A violência contra as mulheres: a “pandemia escondida”da África

OPINIÃO

Por: Luca Bussotti

Não só Moçambique, se poderia dizer… Entretanto, que a violência contra as mulheres constitua um traço comum a muitos países africanos (e não só), não atenua ou justifica os casos recentes que foram despoletados na Pérola do Índico. Porém, é importante termos um quadro geral da situação continental para que todos possamos reflectir em volta desse fenómeno e da sua força estrutural dentro das sociedades africanas.

Acima de tudo, alguns dados. A pandemia levou consigo mais isolamento e mais existência de familiares e parentes sob o mesmo teto e durante muitas mais horas em comparação com o que acontecia anteriormente. A Libéria, por exemplo, registou um incremento de 50% dos casos de violência baseada no género, com – na primeira metade de 2020 – 600 casos reportados de raptos de mulheres, geralmente jovens. Durante todo o ano de 2018, na inteira África Ocidental houve 803 casos de raptos de mulheres. No Quénia, 4000 estudantes de sexo feminino foram engravidadas, por parte de familiares ou de policiais, durante o período de fechamento, e na República Centro-Africana a violência contra as mulheres subiu em 69%. Na África do Sul, segundo dados da polícia daquele país, a cada três horas uma mulher é morta. As medidas adoptadas foram, até hoje, ineficazes.

Globalmente, a estimativa diz que a cada dia 137 mulheres no mundo são mortas pelos familiares, e destas 52 viviam em África. Trata-se de uma percentagem elevadíssima, que coloca o continente africano na dianteira deste não invejável recorde.

Entretanto, existe outra pandemia ainda mais escondida: a relativa aos locais e aos contextos sociais em que tais práticas ocorrem, como no mundo desportivo. Com efeito, o caso mais notório que tem despertado a atenção da opinião pública internacional é o da FIBA (Federação Internacional de Basquete), chamada em causa porque seu presidente, o maliano Hamane Niang (no cargo desde 2019) tem-se demitido devido ao relatório que o Human Rights Watch estava preparando contra ele, e que depois foi retomado pelo New York Times, em razão de abusos e violências sexuais contra algumas jovens jogadoras da seleção daquele país, que já foi campeã africana. Niang (que dirigiu a Federação Maliana de basquete desde 1999 até 2011) não foi acusado de ter praticado de forma directa tais ações contra as jogadoras, mas, sim, de ter tomado cnhecimento dos abusos e violações por parte de dois dos treinadores das seleções femininas malianas e de um funcionário sénior, que foram depois suspendidos dos respectivos cargos.

O New York Times, que entrevistou algumas destas jogadoras envolvidas no caso, destaca que o seu ex-presidente sempre foi alguém que se tem demonstrado completamente incapaz de mexer um só dedo contra a tais abusos, preferindo enveredar pela via do silêncio. Na altura dos factos (que começaram em 2006-2007), as jogadoras confessaram que uma queixa junto às autoridades da polícia teria sido inútil, em consideração das normas demasiado tolerantes para com os homes que protagonizam tais crimes.

Na África do Sul, há poucos meses as autoridadestêm aberto casos contra antigostreinadores e campeões de natação daquele país, acusadosde violações sexuais contrajovens colegas (muitas das quais, na altura dos acontecimentos, adolescentes entre os 12 e os 14 anos), segundo práticasqueteriam iniciado já em 1970-1980.

O breve quadro acima reportado deixa poucas dúvidas e algumas questões de fundo a serem analisadas. Primeiro: acima de tudo, a violência contra as mulheres abrange larga parte dos países africanos, e quem a protagoniza, geralmente, são pessoas que vivem perto das vítimas, acima de tudo familiares. Por isso é que se torna mais complicado que as vítimas, geralmente adolescentes, metam queixas contra aos seus agressores. Segundo: existem mundos aparentemente escondidos em que tais práticas são realizadas, vigendo um generalizado silêncio em volta delas. O desporto, como dissemos, assim como as cadeias e certos ambientes policiais (como no caso de Moçambique) representam lugares de forte risco, principalmente devido à sua elevada hierarquização, que deixa pouco espaço para que as vítimas manifestem a sua condição de forma pública ou junto às autoridades locais. Terceiro: justamente tais autoridades representam a outra face do problema: desinteresse, cumplicidade, falta de cultura em Direitos Humanos fundamentais, isso tudo caracteriza boa parte da população policial africana, em que a maioria das mulheres violadas não acredita, deixando, portanto, passar sob silêncio os abusos de que são vítimas. Quarto: o caso do Mali revela outra situação. Alguém, por vezes, com poder bastante para evitar tais abusos, que nada faz para que esses parem. O caso do ex-presidente da Federação maliana de basquete é um dos muitos que se verificam a este propósito. Ficar olhando sem denunciar os abusos contra jovens familiares, porque as violências foram cometidas pelo pai ou marido, ou contra colegas, porque se receia perder o lugar de titular numa equipa ou não conseguir entrar na tão almejada polícia, tudo isso resulta também decisivo para que o fenómeno não só não abrande, mas tenda a aumentar. Finalmente, uma questão: apesar da longa tradição de muitos povos africanos, que tendem a enaltecer a figura da mulher (sobretudo, mas não só, em sociedades matrilineares), a realidade actual é outra. Será que isto significa que a violência contra a mulher tem mudado as sociedades africanas, e que este aspecto se tornou estrutural para tais sociedades, principalmente depois da eclosão do Covid-19? Hoje, Moçambique tem a grande oportunidade de se tornar exemplo para toda a África na gestão judicial dos casos recentes despoletados. E se trata também de um teste de capacidade política e judiciária por parte do género feminino. Com efeito, calha que uma mulher é Ministra da Justiça, e uma mulher é Procuradora-geral. Uma situação potencialmente ideal para demonstrar quão as mulheres sabem administrar e gerir com equilíbrio e coragem casos tão polémicos e complicados.

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