- Combate à corrupção é selectivo e apenas peixe pequeno fica na cadeia
- Lino de Almeida, A. Sumbana, B. Chirinda e D. Simango no paraíso da impunidade
- Sentença de S. Titosse foi para salvar a honra no meio da investigação do Jornal
- Há processos que estão há mais de 20 anos e outros que acabaram sendo perdidos
Desde o seu discurso inaugural a 15 de Janeiro de 2015, o Presidente da República, Filipe Nyusi, tem hasteado o combate à corrupção como sua principal bandeira. Entretanto, entre o discurso e a acção há um espaço muito grande. Hoje, volvidos sete anos de sua governação, em termos práticos, a mão dura da justiça incidiu somente sobre peixe miúdo, continuando impunes quadros seniores do governo e do partido Frelimo que se envolveram em actos de corrupção. Dos vários processos envolvendo indivíduos ligados à elite política, grande parte terminaram em recursos aguardando por sentença há mais de cinco anos ou liberdade sob caução após exceder o período de detenção preventiva. Na semana passada, três semanas depois de ter sido contactado pelo Evidências sobre a razão da demora da sentença de alguns casos mediáticos como os de Setina Titosse, Lino de Almeira, Amélia Sumbana e Bernardo Chirinda, o Tribunal Superior de Recurso, imediatamente subordinado ao Tribunal Supremo, anunciou a sentença do caso FDA, coincidentemente, um dia depois de ter respondido à nossa missiva, tornando-se o primeiro caso de grande corrupção com sentença transitado em julgado nos últimos dois ciclos de governação.
Texto: Reginaldo Tchambule
Há uma falsa sensação de combate à corrupção nos últimos dois ciclos de governação, uma ilusão sustentada geralmente num discurso irrealista do Presidente da República, Filipe Nyusi que tem estado a apregoar o combate à corrupção na sua governação.
Na verdade por detrás das estatísticas de combate à corrupção vivamente exibidos em discursos ao nível do partido e em comícios públicos esconde-se uma outra realidade: A impunidade de ex-governantes que lesaram o Estado em milhões de meticais, que, muitas vezes, usam o recurso como mero expediente dilatório.
Só em 2020, pouco mais de 556 milhões de meticais foram desviados dos cofres do Estado, em práticas de corrupção envolvendo servidores públicos a vários níveis, tendo sido instaurados vários processos
Recentemente, o Presidente moçambicano, num encontro anual com o corpo diplomático acreditado em Maputo, declarou estar assustado com aumento de casos de corrupção no país. “O aumento de casos assusta-nos”, avançando que o número de processos-crime por corrupção aumentou de 911 em 2019 para 1.280 em 2020, uma subida de 40,5%.
Nyusi disse na ocasião que o aumento do número de casos resulta do sucesso da luta contra a corrupção, o que permitiu a detecção de mais casos.
“Não deve ser entendido apenas como crescimento de casos em Moçambique. Eu até, às vezes, fico satisfeito, quando isso acontece, porque a subida é também resultado de mais trabalho nas instituições, que permite despoletar mais casos e mais responsabilização. O nosso compromisso e combate veemente à corrupção e a todas as suas manifestações é total e enérgico “, enfatizou Filipe Nyusi.
Entretanto, grande parte dos casos de corrupção esclarecidos e cujos actores foram responsabilizados, que constam das estatísticas oficiais referem-se à “gatunagem” de pequena monta, envolvendo pequenos agentes e funcionários públicos, como professores, enfermeiros, polícias, juízes e técnicos a vários níveis.
Em termos práticos, entre a propaganda e o número e qualidade das pessoas realmente responsabilizadas vai uma grande distância. Muitos dos processos ligados à grande corrupção, quando seus actores não são ilibados ou têm a pena convertida em multa, acabam morrendo nos Tribunais Superiores de Recursos e no Tribunal Supremo, conhecidos como autênticos cemitérios de processos.
Nos últimos anos, assistiu-se a pelo menos seis julgamentos de grande corrupção, envolvendo antigos governantes de topo, indiciados de desvio de elevadas somas de dinheiro do erário público, mas o tempo tratou de provar que não passaram de uma simulação para o inglês ver. Grosso modo continuam impunes em suas casas e os processos vão aos poucos sendo apagados da memória dos moçambicanos.
Entre os casos mais sonantes de antigos governantes envolvidos em actos de corrupção que com o beneplácito da justiça selectiva continuam a circular impunemente constam o antigo ministro da Justiça, Assuntos Constitucionais e Religiosos, Lino de Almeida; antiga embaixadora de Moçambique nos Estados Unidos, Amélia Sumbane; antigo embaixador de Moçambique na Rússia, Bernardo Chirinda; antigo edil de Maputo, David Simango; e até semana passada, Setina Titosse, antiga PCA do Fundo de Desenvolvimento Agrário, circulava impunemente.
“Os recursos são usados como expedientes meramente dilatórios” – Jurista Elvino Dias
Em entrevista ao Jornal Evidências, o jurista e analista moçambicano, Elvino Dias considerou que a questão da morosidade processual nas instâncias de recurso não afecta apenas aos cidadãos, mas também aos advogados que, muitas vezes, ficam descredibilizados perante os seus clientes.
Embora reconheça a preponderância do recurso, entanto que garante da justiça material, Elvino Dias refere que no contexto do nosso país o recurso é usado como um meio que garante a impunidade das pessoas, sobretudo quem perde uma sentença em tribunal, ciente de que os processos demoram a ser julgados e vezes há em que até desaparecem ou se extinguem sem ser julgados.
“Há um princípio importante em direito processual civil que consiste em uma decisão ser reapreciada por uma outra instância quando o remetente ou recorrente não concorda com o teor de uma sentença. Os recursos foram concebidos para garantir imparcialidade e a verdadeira justiça, contudo, verifica-se que, na maior parte das vezes, estes recursos são usados como expedientes meramente dilatórios. Eu já tive uma situação em que um cliente desconfiou que eu fui subornado pela outra parte, por não acreditar que um recurso possa levar mais de quatro anos”, revelou Dias.
Pela experiência acumulada andando pelos corredores dos tribunais, Dias diz já ter presenciado situações até hilariantes envolvendo casos recorridos, que vão desde a extinção ao desaparecimento do processo.
“Eu já tenho vários processos que até hoje não têm decisão, porque a outra parte recorreu, e quando tu vais para a secretaria ou ao cartório do tribunal de recurso, a primeira coisa que o próprio funcionário te responde é que ‘nós temos processos de 1992’. Já me foi mostrado um livro de processos de 1992 que ainda não foram decididos e se o meu processo é de 2015 eu não tenho como reclamar, porque existem processos mais antigos que ainda não foram decididos e existe uma hierarquia de prioridades. Isso nos faz concluir que os processos vão e não voltam”, sublinhou.
Lino de Almeida: condenado a dois anos, mas já está a cinco em casa
O primeiro grande sacrificado em nome da propaganda de combate à corrupção a aquecer os bancos do tribunal foi Lino Addulremane de Almeida, antigo ministro da Justiça, Assuntos Constitucionais e Religiosos, que em sede do Tribunal chegou a declarar ter agido em cumprimento de ordens verbais do Presidente da República, Filipe Nyusi.
Abduremane Lino de Almeida foi condenado em Julho de 2017, acusado de ter autorizado o pagamento com fundos públicos de uma viagem a Meca de três pessoas sem vínculo com o Estado, custando aos cofres do Estado mais de um milhão e setecentos mil meticais. O ex-governante é ainda acusado de ter recebido durante a viagem mais de 70% de ajudas de custo em relação ao que tinha direito.
Condenado a dois anos de prisão e seis meses de multa, para além de restituição de todo o valor gasto, por abuso de cargo e uso indevido de fundos públicos, De Almeida nunca sentiu o cheiro de uma cela, embora o “coitado” do Juiz tenha se gabado de ter aplicado uma condenação exemplar para desencorajar aquela prática na administração pública.
“O réu terá de cumprir pena na prisão pois nunca mostrou remorso perante notória ilegalidade”, referiu o Juiz, em alusão ao facto de De Almeida ter sempre vincado ter agido sob ordens de Nyusi.
“Supondo que o réu obedecia a ordem ou instrução, a obediência a essa ordem nunca poderia, de forma alguma, ser devida, porque ela implica a prática de crime, o que punha fim ao dever de obediência hierárquica nos termos da Constituição da República e da Lei”, afirmou o juiz João Guilherme.
Setina Titosse: Uma justiça ao estalo dos dedos
Até semana passada Setina Titosse, antiga PCA do Fundo de Desenvolvimento Agrário, circulava impunemente, depois de, em 2018, ter sido condenada a 18 anos de prisão e ter recorrido da sentença. O caso é relacionado com um rombo de aproximadamente 170 milhões de meticais da instituição que dirigia.
Titosse havia sido condenada a 18 anos de prisão maior e dois anos de multa, correspondente a cinco por cento de salário mínimo, devendo pagar ao Estado moçambicano pelos danos causados.
Só na semana passada é que o Tribunal Superior de Recurso, conhecido como um cemitério de processos, confirmou a condenação de Setina Titosse a uma pena de prisão efectiva de 16 anos (menos dois que a pena aplicada em primeira instância), mais 24 meses de multa e uma suspensão por seis anos do exercício de funções na administração pública.
A sentença que mantém a medida de coação máxima decida em primeira instância, aconteceu três semanas depois de o Evidências ter submetido junto do Tribunal Superior do Recurso da Cidade de Maputo e ao Tribunal Supremo pedidos de informação para apurar o estágio dos processos, incluindo de Setina Titosse, e a razoabilidade do tempo que os referidos recursos estão a levar para serem julgados.
Curiosamente, a sentença saiu um dia após o Evidências ter sido formalmente notificado com a resposta de que não seria possível obter esclarecimentos junto das duas instâncias jurídica para não comprometer o decurso normal do caso das dívidas ocultas, o que indicia a facilidade com que os processos podem ser manipulados ao nível da administração de justiça e o quão sob pressão a justiça pode ser célere.
D. Simango, A. Sumana e Bernardo Chirinda: Outras estrelas de uma justiça selectiva
Em Março de 2019, o tribunal condenou, só para o inglês ver, Amélia Sumbana, antiga embaixadora de Moçambique nos Estados Unidos da América e membro influente do partido Frelimo, a 10 anos de prisão maior, acusada da prática dos crimes de peculato, abuso de cargo e função e branqueamento de capitais. A arguida devia indemnizar o Estado moçambicano em mais de 17.300.000,00 meticais.
Amélia Sumanda, que já foi deputada da Assembleia da República, pelo partido Frelimo, é acusada de ter ordenado a emissão de cheques para fins pessoais, alegando que se destinavam a efectuar pagamentos de obras de reabilitação da residência oficial e compra de bens para o funcionamento da missão diplomática.
Igualmente é acusada de ter solicitado, indevidamente, reembolsos de passagens da classe executiva para viagens que tinha efectuado na classe económica, tendo o juiz da causa concluído que houve dolo.
Mais uma vez, tal como em outros processos de grande corrupção, muitas vezes envolvendo membros seniores do governo e do partido no poder, Amélia Sumbana accionou recurso e segue há dois anos impunemente.
Quem também teve a mesma sorte foi Bernardo Chirinda, antigo embaixador de Moçambique na Rússia, que, após ser condenado a uma pena de 10 anos e oito meses de prisão efectiva e uma indemnização ao Estado moçambicano no valor de 8.661.568,00 Mts, acabou recorrendo e está em casa.
Bernardo Chirinda foi acusado e condenado por ter praticado 23 crimes de peculato, ocorridos entre 2003 a 2012, durante a sua missão na Rússia. Para além de ordenar ajudas de custos para si mesmo em viagens, mandava comprar bebidas alcoólicas, materiais de beleza, roupas e outras quinquilharias com dinheiro dos cofres do Estado.
O último beneficiário da “cláusula de impunidade” foi David Simango, que, recentemente, após ser condenado a uma pena de um ano e seis meses de prisão e 15 meses de multa, a taxa diária de um salário mínimo, pelos crimes de Aceitação de Oferecimento ou Promessa e Abuso de Cargo e Função, também recorreu da decisão do tribunal e segue impune.
Tribunal Supremo não fala para não influenciar o caso das dívidas ocultas
A 02 de Julho corrente, o Jornal Evidências expediu dois pedidos de informação ao Tribunal Supremo e ao Tribunal Superior de Recurso com vista a apurar as principais razões por detrás da demora no julgamento dos recursos e o que pode ser feito para garantir celeridade, bem como resgatar a imagem do Tribunal Supremo e de recurso considerados literalmente “cemitérios de processos”.
Entre vários aspectos, procuramos saber qual é o período médio para o julgamento de recursos ao nível do Tribunal Supremo e dos tribunais de recursos? Se é razoável que um processo julgado e com sentença condenatória leve mais de quatro anos para ter o veredicto final?
Procuramos saber de casos envolvendo antigos dirigentes como Setina Titosse, Lino de Almeida, Amélia Sumbane e agora David Simango que estão a criar a ideia de que a justiça é só feita para os fracos.
Cumpridos os 21 dias estabelecidos por lei, o Evidências voltou a contactar as duas entidades. Em resposta, o Tribunal Superior de Recurso da Cidade de Maputo remeteu qualquer esclarecimento ao Tribunal Supremo, que, por sua vez, através do respectivo porta-voz, Pedro Nhatitima, escusou-se a prestar declarações, alegadamente para evitar influenciar o processo das dívidas ocultas.
“A entrevista não vai ser possível porque achou-se não oportuno nesta fase como vai dar início o julgamento das dívidas ocultas. Se calhar numa outra altura poderemos falar, para não influenciar o processo que vai iniciar”, destacou Pedro Nhatitima.
Apesar de termos esclarecido que o nosso trabalho não tinha nenhuma relação com o caso das dívidas ocultas, Nhatitima recusou-se a dar mais detalhes alegando “o ser humano depois começa a cogitar outras coisas. É mais por esse processo que está ai a vir”, sentenciou.
Um vazio legal(izado)
Para Elvino Dias, a ausência de um prazo para o julgamento de recurso acaba abrindo um vazio que é, muitas vezes, usado pelas elites ligadas ao partido no poder quando são condenados, para se manterem impunes.
“Infelizmente não existem prazos. Tanto o código do processo penal, como o código do processo civil não fixam prazo para os tribunais superiores de recursos, nem para os tribunais onde se recorre, o que faz com que muitos indivíduos recorram a esta figura para poderem escapar a uma decisão que não lhes seja favorável”, disse Dias, acrescentando que, porque a elite política conhece a fragilidade e a realidade moçambicana, quase sempre recorrem.
Comentando sobre o caso Titosse, Dias disse que é uma excepção, porque não há memórias recentes de um processo tratado de forma célere, envolvendo uma figura ligada ao partido no poder e ao Governo.
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