Cabo Delgado: negociar com quem?

OPINIÃO

Por: Luca Bussotti

Não é a primeira vez que um estadista moçambicano lança apelos para que os insurgentes de Cabo Delgado sentem à mesa das negociações com o governo, procurando resolver pacificamente as questões candentes que levaram a um conflito que perdura desde 2017. Desta vez foi o antigo Presidente Chissano a fazer este tipo de proposta, que já tinha sido avançada por parte do actual Presidente, Nyusi, em várias circunstâncias.

As intenções são, como é óbvio, boas: resolver conflitos mediante o diálogo é a via preferível, substituindo as armas por política e diplomacia. E Chissano não seria novo nesta empreitada, tendo ele experiência não apenas com Moçambique (conflito com a Renamo), mas também com outros países africanos, como Madagáscar.

Entretanto, tem um porém: deixando a evolução – aparentemente favorável – da situação militar na frente de Cabo Delgado e nomeadamente em Mocímboa da Praia -, o que parece que estes convites não querem considerar é a natureza do actual conflito e de quem o provocou. A comparação com a guerra com a Renamo é obrigatória, mas desviante: a Renamo tinha uma ideologia política clara (liberalismo), um líder consagrado (Dhlakama), um objectivo a alcançar (a democracia), e aliados externos também bastante bem definidos e identificáveis, com os quais era até possível instaurar um diálogo para que a guerra terminasse. E assim foi. A natureza política da Renamo não era muito diferente daquela da Frelimo: tratava-se de um partido político que, devido às circunstâncias históricas, escolheu a via das armas para afirmar seus princípios e ideais. Mas não deixava de ter uma organização típica de uma formação política tradicional, com hierarquias claras e uma liderança conhecida, querendo substituir a Frelimo na governação do país. Jogos políticos, em suma…

O caso da insurgência em Cabo Delgado é completamente diferente, como o é qualquer tipo de rebelião baseada em actos de terrorismo, ainda mais se de matriz islâmica ou suposta tal. Com efeito, fora dos grandes líderes terroristas das várias formações que se constituíram ao longo do tempo, como Bin Laden no caso de Al-Qaeda, ou Abu Ibrahim al-Hashimi al-Qurashi no caso do Estado Islâmico, em muitas ocasiões as insurgências desta natureza têm sido levadas a cabo por parte de grupúsculos com lideranças difusas, e uma organização que reproduz um Islão de confrarias, pouco hierarquizado e muito horizontal, quanto à sua concepção e organização.

Não se trata de formações políticas com uma ideologia definida, nem se percebe perfeitamente qual seria o objectivo último de tanta violência…Em suma, o quadro de fundo deste tipo de insurgências é completamente diferente da experiência que Moçambique teve com a Renamo. Até hoje, apesar dos esforços dos académicos e jornalistas moçambicanos e estrangeiros, as lideranças – pelo menos locais – dos insurgentes são desconhecidas ou, se conhecidas, não são significativas e não chegam a influenciar a acção de outros grupos; ninguém conhece onde é que os insurgentes querem chegar, quem os financia, sobre as supostas causas sabe-se algo bastante genérico, mas nada de claramente definido e compreensível, a não ser hipóteses mais ou menos credíveis.

Devido a essas razões todas, fica complicado imaginar que alguém, entre os insurgentes, possa aceitar sentar com o governo para negociar. Em primeiro lugar porque a natureza desta insurgência é completamente diferente daquela protagonizada por parte de qualquer formação política tradicional: sua ideologia continua um mistério, a não ser uma também genérica pertença radical islâmica, que nunca vai desaguar num modelo que preveja eleições a que estes grupos possam também participar. Em segundo lugar, quem é que sentaria com o governo? Como dito, não existe uma liderança comum e afirmada entre estes grupos, pelo que seria bem possível o governo negociar com um grupo, mas ao mesmo tempo outros não aceitarem esta perspectiva, e continuarem assim com os combates…

Em suma, fora das boas intenções, é evidente que este conflito é muito mais complexo do que o conflito com a Renamo, e que as autoridades moçambicanas terão de procurar resolver o assunto de forma unilateral, imaginando as soluções melhores para parar com isso, quer do ponto de vista militar, quer social, económico e étnico. Talvez trabalhando nestas dimensões é que a insurgência, no médio prazo, poderá deixar de constituir uma boa opção para jovens que, de momento, não vislumbram qualquer esperança para suas vidas, vendo outros, de uma etnia diferente e dominante, aceder a todos os privilégios possíveis, por razões políticas e não de mérito individual. E encontrando, assim, na destruição a única forma de se expressarem e de comunicarem sua raiva.

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