Há um exército de mulheres que sofrem caladas

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  • Há um exército de mulheres que sofrem caladas

A violência doméstica, sobretudo contra a mulher, continua um dos crimes mais comuns na sociedade moçambicana e tende a aumentar sobretudo neste período de confinamento por causa da Covid-19. A título de exemplo, só no primeiro semestre deste ano, o Gabinete de Atendimento à Família e Menor Vítima de Violência, na província de Gaza registou cerca de 1558 denúncias de casos de violência, contra 1132 de igual período do ano passado, sendo as mulheres as principais vítimas. Mas, fora destas estatísticas, há muitas outras vítimas que sofrem e chegam a perder a vida no silêncio. É o caso de Anastácia Massingue (nome fictício) de 29 anos de idade, casada há cinco anos. No início, a relação parecia um mar de rosas, mas há quatro anos que vem sofrendo violência do seu marido, desde ofensas corporais à violência psicológica, incluindo insultos, mas nunca pensou em denunciá-lo às autoridades, por ser o principal provedor da família.

Neila Sitoe  

No ano de 2018 foram registados em todo país 25.356 casos de violência doméstica, dos quais mais de 12.500 contra mulheres e 9.000 contra crianças. Há ainda um registo superior a 3.000 casos de violência doméstica contra homens. Em 2020, registou-se um ligeiro abrandamento de casos que chegaram às autoridades e os que tiveram tratamento criminal.

Foram 7.591 processos-crime instaurados em 2020, por violência doméstica, segundo a Procuradoria-Geral de Moçambique, uma redução de 89 processos em relação a 2019. A província de Gaza, sul de Moçambique, lidera o número de casos de violência doméstica que chegaram às autoridades no ano passado, com 1.351, seguida de Inhambane, sul, com 1.272, e da cidade de Maputo, com 1.132. As províncias de Cabo Delgado, norte, com 257 casos, Sofala, centro, 384, e Manica, centro, 428, registaram menor número de processos-crime por violência doméstica.

Entretanto, longe das estatísticas, várias mulheres vivem num ciclo de violência protagonizada pelos seus maridos e não denunciam. Anastácia Massingue, residente em Chongoene, província de Gaza, é parte dessas estatísticas. Casada há cinco anos, não sabe o que é paz no lar nos últimos quatro anos.

“Estou com meu marido há cinco (5) anos e ele me bate, me insulta, não me respeita e chega a casa a hora que quer. A situação piorou quando fiquei grávida do nosso primeiro filho, que hoje está com quatro anos. Depois do parto melhorou, mas quando tivemos o nosso segundo filho, as agressões aumentaram e cada dia a nossa relação vai se tornando mais amarga. Faz o que lhe apetece, e por mais que eu fale ou reclame ele não se importa”, lamentou.

Questionada sobre o porquê de não denunciar, e se sujeitar a viver com um homem que a “maltrata”, com voz trémula e semblante triste respondeu “aquele tem amigos na Polícia e sempre diz que por mais que eu vá queixar nada lhe será feito”.

Quando o agressor é o principal provedor da família

Mas a questão é mais profunda do que pode parecer. O seu marido é o principal provedor não só da sua família, como também dos pais da vítima, razão pela qual não tem tido apoio destes quando procura-os em busca de socorro.

“Uma das vezes que me bateu, voltei para casa dos meus pais, mas eles mesmo disseram-me para voltar para a minha casa e perdoar meu marido, porque ele é um bom homem e eu é que o fiz zangar porque falo muito desde criança”, lamenta a vítima.

Anastância é a filha mais velha de quatro (4) irmãos, seu pai era mineiro, mas por circunstâncias da vida ficou desempregado, a sua mãe pratica agricultura de subsistência e a sua família estava vulnerável até ela se unir ao marido.

Apesar de viver distante dos sogros e dos cunhados, é quem custeia algumas despesas destes como os estudos dos seus irmãos, e mensalmente envia algum valor para ajudar os sogros na alimentação.

“Como posso denunciar alguém que sustenta os meus pais e paga a escola dos meus irmãos? Ele me proíbe de estudar, de trabalhar, de fazer até um negócio mesmo em casa, mas quando estamos com as pessoas diz que eu é que não quero estudar, trabalhar e nem fazer negócio, porque prefiro ficar em casa a cuidar dos nossos filhos e do meu lar. Vale a pena mesmo denunciar alguém que todos o vêem como santo?”, indagou Anastácia visivelmente transtornada.

O medo da exposição

Assim como Anastância, Laura Cossa (nome fictício) de 38 anos de idade, residente na cidade de Xai-Xai, também sofre violência por parte do marido, mas diz que não o denuncia porque não quer expor a sua vida, pois os dois são funcionários públicos e muito conhecidos na cidade.

“Estou com meu marido há mais de 10 anos, nunca me agrediu fisicamente, mas insulta quando bebe e ameaça-me constantemente. Por vezes não dorme em casa e não contribui para as despesas, dizendo que eu também trabalho, controla-me muito, só me deixa sair para trabalhar e participar dos eventos familiares, mas acho que é amor, porque ele sempre foi ciumento e desde o início da nossa relação sempre deixou claro que não gosta quando eu saio de casa”, conta a jovem.

Prosseguindo, a vítima conta que por vezes fica irritada com a relação possessiva e a constante violência psicológica que sofre, mas não denuncia para preservar o lar.

“Dificuldades sempre existiram num lar, quando nos conhecemos, os dois ainda estávamos a estudar, enfrentamos muita coisa juntos e, hoje, já temos nossa casa, nosso carro e nossos filhos têm o que comer e o básico que crianças da idade deles precisam ”, afirmou Laura.

“Mulheres não denunciam violência por medo de serem malvistas”

Para explicar a tendência cada vez mais crescente de vítimas de violência que sofrem no silêncio, o psicólogo Nilton Chiziane recorre a questões culturais e aponta que nalgumas realidades do nosso país, como é o caso de Gaza, onde ainda impera o machismo, a agressão física chega a ser encarada como uma demonstração de amor.

“A violência é um assunto muito sensível e é até cultural. Em algumas comunidades, é normal ouvir ‘meu marido bate-me porque gosta de mim’”, conta o psicólogo, para depois aclarar que existem vários outros factores que fazem com que as mulheres não denunciem casos de violência.

“Muitas vezes não tem como provar a violência, porque, por exemplo, quando se trata de violência psicológica ela é facilmente contestável, mas também existe a ideia de que o agressor não será punido, o medo de ser malvista pela sociedade, vergonha, sentimento de culpa, a dependência financeira, o medo de perder os filhos e, por vezes, as vítimas são culpabilizadas com questões de porquê saiu de casa e voltou tarde, porquê não fez o jantar a tempo e hora entre outras questões, reconhece Chiziane.

No entanto, adverte que quando a vítima não denuncia casos de violência, as implicações podem ser graves, pois o agressor não se sente responsabilizado pelos seus actos.

“A sociedade, em suas práticas, reforça a cultura patriarcal e o machismo, o que dificulta a percepção da mulher de que está a viver no ciclo de violência que muita das vezes leva a lesões graves, problemas psicológicos ou mesmo a morte”, lamentou. 

Chiziane apela a todas as mulheres que vivem num ciclo de violência a denunciarem, porque, segundo ele, a denuncia é um dos pilares fundamentais para o enfrentamento, e até a mulher chegar ao ponto de repreensão ao agressor, ela precisa se sentir protegida e assistida, não só pela justiça, mas também por profissionais de saúde.

“Se a mulher estiver em vulnerabilidade psicológica, a grande chance é que ela volte, retire a queixa, reate o relacionamento e permaneça em perigo e num cenário de dependência emocional e financeira, isso não é raro de acontecer”, sublinha.

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