Reina um ambiente de cortar à no desporto motorizado moçambicano. A Federação Moçambicana de Automobilismo e Motociclismo (FMAM) e o Automóvel e Touring Clube de Moçambique (ATCM) estão de costas voltadas. O ATCM, com o apadrinhamento da Secretaria do Estado do Desporto, continua a realizar provas sem obedecer às normas impostas para a FMAM, que entende que a instituição chefiada por Rodrigo Rocha não está a cumprir na íntegra o artigo 19 da Lei do Desporto. Em entrevista ao Evidências, o antigo vice–ministro da Juventude e Desportos, Carlos Sousa, carinhosamente tratado por Doutor Cazé, defende que chegou o momento de resolver os problemas que minam o desenvolvimento do desporto motorizado no país, dando exemplo do futebol, em que a Federação Moçambicana de Futebol é um órgão soberano que tutela a modalidade a nível nacional.
Há uma guerra aberta entre a FMAM e o ATCM, este último um clube que durante muito tempo funcionou e praticou actos da competência de uma federação e, agora, não aceita adaptar-se ao novo normal. Para continuar a operar nos mesmos moldes, o ATCM conta com o apadrinhamento da Secretaria de Estado dos Desportos, na pessoa de Gilberto Mendes, ignorando que por via de um decreto do extinto Ministério da Juventude e Desportos, o governo retirou, em 2017, a carta que autorizava e dava poderes de uma federação ao ATCM
O Evidências ouviu um decano do dirigismo e que conhece vários dossiers do desporto nacional. Trata-se de Carlos Sousa, uma figura incontornável do desporto moçambicano, deixa claro que há uma separação de competências entre o ATCM e a FMAM.
Olhando para o cenário que se vive no presente, em que o ATCM continua a desempenhar o papel de organizador, árbitro e juiz, enquanto existe uma federação que chancela a modalidade no país, o antigo governante chama o passado para encontrar as respostas para o imbróglio.
“A lei do desporto é muito clara no que diz respeito à maneira que o desporto se deve organizar em clubes, em núcleos desportivos, associações e nas federações. A lei prevê que na inexistência de uma federação, o governo, órgão estatal que tutela o desporto, pode conceder ao clube a faculdade da representação do país a nível internacional. Na altura, o clube mais desenvolvido era o ATCM. E na altura, por solicitação do ATCM, o Ministério da Juventude e Desportos concedeu a prorrogativa de representação internacional e isto está previsto na lei”, disse
Entretanto, explica que com o passar dos anos, alguns intervenientes do desporto motorizado decidiram criar a Federação Moçambicana de Automobilismo e Motociclismo. Aliás, Sousa lembra que a par de outros clubes a nível do país, o Automóvel e Touring Clube de Moçambique foi um dos clubes que abraçaram a causa, mas quando chegou o momento da constituição decidiu se afastar.
Olhando para o acontece em outras modalidades desportivas, em particular o futebol, observa que a partir do momento em que foi criada e formalizada a Federação Moçambicana de Automobilismo e Motociclismo esta passa a ser autoridade máxima e responsável pelos destinos da modalidade no país, tendo lembrado que, por existir um órgão que chancela o automobilismo e motociclismo, o Ministério da Juventude e Desportos retirou a representação internacional a ATCM.
“A partir do momento em que foi constituída a Federação Moçambicana de Automobilismo e Motociclismo a ministra Juventude e Desportos, Nyelete Mondlane, fez a notificação ao ATCM retirando a representação internacional, porque já existia uma federação. É assim que funciona no futebol, no basquetebol, atletismo, vela ou outra qualquer modalidade. Esse é um procedimento normal e penso que essa questão é tão essencial”, comenta.
“No futebol, quem organiza o campeonato nacional é a Liga Moçambicana de Futebol (LMF), mas quem nomeia os árbitros é a Federação Moçambicana de Futebol (FMF). Na FMF há um instituto para os jogadores se credenciarem a nível internacional, não são os clubes que têm essa prorrogativa”, acrescenta Doutor Cazé, como que a passar um certificado de incompetência ao elenco de Gilberto Mendes, que parece estar nas mãos dos dirigentes da ATCM.
“Está na hora de haver paz e tranquilidade para o bem do desporto motorizado”
Aliás, Doutor Cazé recorreu aos problemas registados quando alguns clubes viram-se obrigados a não participar do Moçambola, porque a FMF entendeu que os mesmos não cumpriram com os critérios exigidos, mormente para o licenciamento.
“Hoje tens uma federação do desporto motorizado e tens vários clubes. Sei que na constituição da federação participaram vários clubes e alguns cidadãos individuais para constituir o tal número de 10. O ATCM é um clube que tem provas, pilotos, sócios, mas não pode ser o ATCM a emitir licenças. O ATCM regista e autoriza o juiz de prova e quando há uma reclamação também é o clube quem recebe. Em caso de problemas, não pode ser o clube que analisa o processo e toma decisões”, analisa.
Aquela biblioteca do dirigismo desportivo nacional entende que, sendo Moçambique um Estado de direito, em que há claramente a separação dos três poderes: executivo, legislativo e judicial, o desporto rege-se pelo mesmo princípio.
“O exemplo do futebol é o mais típico. É preciso que ao nível das outras modalidades, este exemplo seja facilmente seguido. A minha experiência com o desporto motorizado é que ao longo dos anos sempre foi um relacionamento difícil, mas acho que está na hora de haver paz e tranquilidade para o bem do desporto motorizado”, perspectiva.
“SED não deve se meter nas questões de conflitualidade entre clubes e federações”
A Secretaria do Estado de Desportivo, entidade responsável pelo desporto depois da extinção do Ministério da Juventude e Desportos, é acusada pela Federação Moçambicana de Automobilismo e Motociclismo de ser parcial na sua actuação, ou seja, não tem escondido a sua preferência pela ATCM no acto da tomada de decisões. O antigo vice-ministro da Juventude e Desportos lembra que o papel do governo deve sempre ser de regulador.
“Há países em que o Estado não tem nenhuma estrutura gestora do desporto e que são as federações e os comités olímpicos que se organizam. Nós ainda não temos essa capacidade. Ainda existe uma certa intervenção do Estado no associativismo desportivo, mas é preciso haver clareza. Os clubes desportivos, as associações e as federações são instituições do direito privado e são instituições do associativismo desportivo. O Estado tem o papel de regulador, é por isso que existe a lei do desporto e diversos diplomas sobre atletas da alta competição e sobre a medicina desportiva”, disse Sousa.
Sousa entende que em caso de conflitos, o Estado deve assumir o papel de mediador, guiando-se sempre pela lei.
“Em questões de conflitualidade, o Estado deve assumir o seu papel de respeitar a lei, e a lei deixa claro que quem organiza as competições são os movimentos associativo, ou seja, as federações e, por baixo das federações, as associações e clubes desportivos. O papel do Estado seria em primeiro lugar: tal como fez o MJD retirar ao ATCM o direito de representação internacional, porque a partir de um momento em que existe a federação, a representação internacional é desta”, sublinha.
Na opinião de Carlos Sousa, o papel da SED é garantir que as instituições que são reconhecidas pelo Estado, como o caso da FMAM, tenham o direito de representação internacional e o direito de regular as competições a nível nacional.
“Na minha opinião, acho que a SED não deve se meter nas questões de conflitualidade entre clubes e federações. Ela tem a função de umbrela de todas modalidades e deve respeitar a lei. Se existe uma federação constituída, é essa federação que deve ter o direito de representação internacional e isso deve ser salvaguardado, uma vez que essa federação está formalmente constituída e reconhecida. A SED até devia intervir junto das federações internacionais para que esse estatuto de representação seja atribuído à federação”, recomenda.
“Não pode haver lugar para conflitos”
O ATCM nunca aceitou subornar-se à Federação Moçambicana de Automobilismo e Motociclismo, mas Sousa lembra que, apesar da dimensão do ATCMm, todos os clubes são iguais.
“Olhando para o passado, temos que reconhecer e apoiar o trabalho feito pela ATCM ao longo desses anos após a independência, no sentido de manter as diversas modalidades do desporto motorizado em acção. Por terem conseguido manter o ATCM como tal. Não foi fácil, houve diversas intervenções e, por isso, disse que a honra seja feita ao António Marques e aqueles que à volta dele trabalharam para manter o ATCM. Mas é fundamental que exista a federação e esta está formalmente constituída e deve ser respeitada. No desporto motorizado o ATCM tem uma dimensão muito grande, mas isso é normal, não somos todos iguais”.
Carlos Sousa sublinha que deve-se respeitar as hierarquias, observando que a partir do momento em que se instituiu a Federação Moçambicana de Automobilismo e Motociclismo não há legitimidade do ATCM continuar a ser a instituição que representa o país a nível internacional.
“Fui convidado na assembleia-geral da federação e por aquilo que sinto das pessoas que participaram, a maioria delas cresceu no ATCM, está preocupada com o desenvolvimento da modalidade. Que haja respeito pelas normas nacionais e internacionais. Não é legitimo o ATCM continuar a representar o país a nível internacional a partir do momento em que existe uma federação. Sei que ao nível da FIA e a nível de outras federações internacionais, a representação de um país compete apenas a uma instituição. É necessário, de facto, que isso seja feito e o próprio ATCM, que usou essa prorrogativa legal de representar o país, sabe que existe uma federação, deve filiar-se e junto da FIA dizer que existe uma federação, portanto nós achamos que a representação de Moçambique deve ser feita pela FMAM e nos retiramos”, recomendou.
“Estamos a bater cada vez mais no fundo”
Para a resolução do conflito, o antigo ministro apela às partes envolvidas a encontrar uma solução para o bem do desporto motorizado no país, uma vez que o imbróglio tem atrasado sobremaneira o desenvolvimento da modalidade no país.
“Há pilotos moçambicanos que têm a capacidade de realizar feitos a nível internacional, quer no automobilismo, como no motociclismo, e esses talentos tem que ser aproveitados, dinamizados e apoiados no seu desenvolvimento. Inclusive deve haver um trabalho de formação a nível de jovens para permitir que haja desenvolvimento. Isso só se consegue com a pacificação”
Convidado a analisar o panorama desportivo nacional do presente, Doutor Cazé entende que se o país não apostar no desporto escolar não há como sair da situação que se atravessa.
“A política do desporto que está em vigor tem oito pilares, um dos pilares é o desporto escolar. Enquanto não tivermos o desporto escolar desde a escola pré-primaria até a universidade completamente organizados e a prática obrigatória nestas instituições não vamos sair da situação que estamos… E estamos a bater cada vez mais no fundo. O desporto deixou de ser uma actividade curricular. Enquanto o desporto for encarado como uma brincadeira não iremos para lado nenhum. Temos universidades que formam licenciados em educação física e desporto, na gestão desportiva, mas quantos deles estão nos clubes ou nas federações?”, questionou.
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