“Quando olho para minha esposa e vejo a cicatriz na cara, sinto vergonha”

SAÚDE SOCIEDADE
  • Arrependimento, perdão e amor criam um novo homem

Na sociedade moçambicana, os ex-reclusos deparam-se com várias dificuldades no processo de reinserção social, desde a discriminação, vergonha, falta de oportunidades, ou, em casos mais graves, repulsa da comunidade ou até da família, obrigando estes, por vezes, a procurar reiniciar a vida em locais onde não são conhecidos. Mas este não foi o caso de Matias Namburete, residente no bairro da Urbanização, na cidade de Maputo, que, apesar de ter sido privado de liberdade por um tempo, na sequência da condenação por crime de violência doméstica, praticado contra a sua mulher e seus filhos, ao retornar a sua comunidade foi aceite. Hoje diz-se ser um homem arrependido, após um período longo de introspecção por detrás das grades e jura de pés juntos que nunca mais volta a levantar a mão contra a esposa e filhos.

Neila Sitoe

A pena para alguém que comete um crime de violência doméstica em Moçambique é variável, nos casos em que há violência grave, aplicam-se penas previstas no artigo 360 do Código Penal, em função da gravidade da violência e do tempo necessário para a cura da lesão, em conjugação com o disposto no artigo 14 da Lei n° 29/2019, de 29 de Setembro.

Ter cumprido dois anos no Estabelecimento Penitenciário de Maputo foi como uma nova oportunidade para Matias Namburete, de 34 anos de idade, residente no bairro da Urbanização, na cidade de Maputo, na sequência de crimes de violência doméstica contra a sua esposa e dois filhos, do qual diz se arrepender bastante, mas que até hoje não sabe o que o levou a cometer tal crime.

“Sempre que me perguntam o que fez com que agredisse minha mulher e meus filhos, não sei responder, mas causei muito mal. Olho para minha esposa e vejo a cicatriz na cara e outras marcas que tem no corpo e me pergunto como fui capaz de fazer isso. Sinto vergonha ao andar na rua, apesar dos meus vizinhos e amigos terem me recebido bem. Olho para os meus filhos e nem acredito que fui capaz de levantar a mão contra duas crianças inocentes que, mesmo depois do que os fiz passar, ainda me amam e olham para mim como seu progenitor”, lamentou Matias.

Matias conta que no momento em que esteve preso, a sua mulher e seus familiares não o abandonaram. O perdão e o amor dos seus foi o que o motivou a esperar pacientemente os dois anos na prisão e ansiar a sua soltura, porque sabia que tinha com quem contar apesar de tudo, de tal forma que diz que nunca mais irá levantar a mão contra eles.

“O amor e o perdão dos meus familiares me fortaleceram muito, confesso que apesar de querer que os dois anos passassem rápido, tinha medo de voltar a ter contacto com eles e com a sociedade, mas fui bem acolhido e os meus amigos, com a ajuda do chefe do quarteirão, arranjaram-me um emprego de ajudante de carpinteiro. Sou muito grato a todos eles. Nos momentos de lazer procuro conversar com a minha família e ler a Bíblia, que foi uma das coisas que me fez sobreviver a várias coisas na prisão”.

O drama de quem teve de ir às últimas consequências

Os agressores ou violadores não pertencem a um grupo particular concreto, podendo ser pessoas respeitáveis, reconhecidas socialmente como tendo um bom comportamento, pais de família, profissionais de variados sectores ou pessoas que a vítima tem total confiança.

Foi assim para Isabel Macie, de 32 anos, residente no bairro da Urbanização, na cidade de Maputo, até a sua confiança ser quebrada pelo próprio marido, com quem vivia maritalmente durante mais de nove anos e do fruto da união tiveram dois filhos.

“Matias sempre tratou bem a todos, até que iniciaram as agressões físicas. Depois de resistir durante muito tempo, acabei participando o caso na polícia, porque para além de mim já batia nas crianças. Recebeu várias advertências mas continuava a agredir-me. Certa vez, o chefe do quarteirão e algumas vizinhas tiverem que acompanhar-me para o hospital e depois para a esquadra, porque estava muito ferida após ele agredir-me com o cabo de vassoura, várias vezes na cabeça”, revelou Isabel aliviada.

Apesar de o seu marido ter sido preso, ela conta que não desistiu dele, sempre o visitava e fazia questão de fazer os seus pratos preferidos e hoje sente-se satisfeita.

“Vejo que o meu marido é um novo homem, apesar de não saber o que ele passou na cadeia porque não nos conta. Agora passa mais tempo connosco, conversa com as crianças, até frequenta a igreja. Creio que ele aprendeu da pior forma possível, mas porque não o abandonamos conseguiu reerguer-se”, acrescentou.

Família e comunidade assumem um papel importante na reinserção

Cátia Sitoe, assistente social, considera que a família assume um papel importante no processo de reinserção do ex-recluso, por ser o primeiro núcleo no qual o indivíduo se insere, esta tem o papel de proteger e apoiar o seu familiar, dado ao facto de este se encontrar vulnerável à desconfiança e descriminação.

“Todo o recluso beneficia de acompanhamento, e para a reintegração na comunidade primeiro faz-se uma visita à família para saber do comportamento do seu familiar, se a mesma está disposta a receber de volta o seu familiar, em caso afirmativo, entra-se em contacto com as estruturas do bairro com o mesmo fim, e, por fim, este é acompanhado e apresentado à comunidade como um indivíduo que cumpriu pena e merece o perdão da mesma”, disse destacando que a comunidade assume um papel importante na reinserção do ex-recluso.

A comunidade tem, segundo a fonte, o dever de receber o indivíduo de forma aberta, sem nenhum tipo de descriminação e rótulos, e, se possível, oferecer oportunidades de trabalho para que este pratique o que aprendeu na prisão e inicie uma nova vida.

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