Luca Bussotti
O novo escândalo conhecido como Pandora Papers foi despoletado através de uma investigação levada a cabo pelo Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos (ICIJ), juntamente com o jornal Poder 360 (https://www.poder360.com.br/pandora-papers/conheca-outras-7-investigacoes-do-icij-e-poder360-sobre-offshores/). Não se trata de uma novidade, pois estas duas entidades estão já na sétima investigação desta natureza, inclusive a relativa aos Panama Papers e à descoberta do papel decisivo do FBI na operação Lava Jato, que levou ao julgamento e condenação (ora arquivados) do ex-presidente brasileiro Lula.
No caso específico, segundo relatam as fontes, o ICIJ obteve 11,9 milhões de arquivos confidenciais, liderando uma equipe de mais de 600 jornalistas de 150 órgãos de informação, trabalhando durante dois anos na análise de documentos. As fontes dos documentos analisados provêm de 14 firmas de serviços offshore de todo o mundo, cuja finalidade é abrir empresas fantoches para clientes que, no geral, querem manter secretas suas identidades assim como as operações financeiras das sociedades controladas.
Se personagens como a cantora Shakira, Ringo Starr ou Sir Elton John adoptaram tais práticas como cidadãos privados (não justificáveis, mas que evidentemente procuraram fazer os seus interesses particulares, sem terem cargos públicos) outras, como Tony Blair se puseram num patamar ético, antes de judiciário, pior, para não falar dos que estão exercendo neste momento cargos públicos, como o rei de Jordânia ou os presidentes do Equador ou da Ucrânia. Os quais, em boa verdade, estão evitando pagar impostos nos países que governam, incrementando as suas riquezas e, assim, disponibilizando menos receitas para garantir melhores serviços aos cidadãos que administram.
O continente africano está, por assim dizer, bem posicionado nesta especial corrida das fortunas de alguns dos seus governantes em paraísos fiscais. Foi este o caso de três presidentes actualmente exercendo funções, a saber: Uhuru Kenyatta, presidente do Quénia, Denis Sassou Nguesso, presidente da República do Congo e Ali Bongo Ondimba, presidente do Gabão. Três figuras que governam países com problemas enormes, mas que resultam entre os mais ricos entre os chefes de Estado do continente.
Uhuru Kenyatta, um dos filhos de Mzee Jomo Kenyatta, considerado como o pai da pátria queniana, juntamente com os seus familiares, têm interesses difusos no sector hoteleiro, na saúde, bancos, mídia e construções. Seu domínio dos Kenyattas no Quénia foi definido como sendo uma verdadeira “captura do Estado”, e é hoje considerado como o quarto presidente mais rico de África, com um património pessoal que ronda os USD 500 milhões.
Sassou Nguesso é o actual presidente da República do Congo (ou Congo-Brazaville). Militar de formação, actualmente general e antigo comandante da força aérea do seu país, assim como influente membro da intelligence local, é acusado, na França, de crimes contra a humanidade (suas milícias, chamadas Les Cobras, calcula-se que fizeram mais de 3000 mortos, durante os vários golpes e repressões que mantiveram Nguesso no poder), ao passo que entre 1999 e 2002, segundo o Fundo Monetário Internacional, não tinha nenhum indício de onde é que terão parado USD 248 milhões provenientes do petróleo do país e completamente ausentes do orçamento do Estado. O paraíso fiscal da família se encontraria nas British Virgin Islands. Só para dar uma ideia, Denis Christel, um dos filhos, investigado pelo Tribunal Federal da Florida, teria, na qualidade de então presidente da sociedade pública congolesa de petróleo, a SNPC, comprado, nos Estados Unidos, imóveis e outros assets equivalentes a um valor superior a USD 29 milhões, ou seja, cerca de 10% do orçamento público do seu país destinado à saúde. O poder exercido por Sassou Nguesso no Congo-Brazaville foi definido como sendo uma cleptocracia.
Ali Bongo Ondimba é o actual presidente do Gabão. No cargo desde 2009, é o filho do anterior presidente, Omar Bongo, que foi presidente do Gabão desde 1967, depois de ter substituído o primeiro presidente do país, M’Ba, que faleceu justamente em 1967. O domínio desta família no país levou Ali Bongo a ser considerado, pela revista Forbes, como o governante mais rico de África, depois do rei de Marrocos, Mohammed VI, com um capital calculado em USD 1 bilhão.
Uma das questões que se colocam tem a ver com os actores que deveriam fiscalizar este comportamento prejudicial por parte dessas três figuras, assim como de muitas outras com cargos menores: relativamente a Moçambique, do caso de Aires Ali, antigo primeiro-ministro, o jornal Evidências já deu conta em outras edições e portanto, não precisa, aqui, acrescentar mais nada.
Entretanto, os três países com envolvimento directo dos seus chefes de Estado têm várias características comuns: trata-se de democracias muito fracas (com a parcial excepção do Quénia), dominadas pelo neo-patrimonialismo dos respectivos presidentes e suas famílias, cheios de recursos naturais (em particular petróleo), e em que a liberdade de imprensa está cada vez a piorar e a justiça não actua. No próprio Quénia, considerado como país “parcialmente livre” (ao passo que os outros dois são “não livres”), o índice de liberdade de imprensa elaborado pelos Repórteres sem Fronteiras está em queda, colocando este país no lugar 102 de 180 países (em 2019 estava no centésimo lugar), piorando a partir de 2017, aquando das contestadas eleições presidenciais que foram repetidas e que deram a vitória, pela segunda vez, ao actual presidente. O Gabão encontra-se no lugar 115 deste ranking internacional, e o Congo-Brazaville no 117…
O mesmo pode ser dito a respeito da justiça: nestes três países nunca foram levados a cabo processos contra as três figuras envolvidas, ao passo que elas estão a ser investigadas há anos nos Estados Unidos, França, Suíça e outros países, principalmente europeus…
Em suma, o sistema cleptocrático acima ilustrado não pode não contar com a complacência (e o controlo) do poder judiciário por parte do poder político, assim como da imprensa, apesar de alguma coisa fugir a este propósito (por exemplo, no Quénia existem duas entidades que colaboraram, como parceiras, com a investigação do Pandora Papers).
O actual julgamento em curso na B.O em Maputo pode ser enquadrado no esquema interpretativo acima exposto: com as devidas diferenças, a grande questão é a seguinte: será que a justiça e a imprensa moçambicanas terão a capacidade e a possibilidade de exercer seu poder, independentemente das evidentes pressões políticas que estão sendo feitas, quer junto ao sistema judiciário, quer à mídia local?
Ainda poucas semanas de espera, e a gente terá respostas concretas a essas inquietações.
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