- Marcha dos médicos contra raptos indeferida por representar risco de Covid-19,
- Mas nunca se evocou Covid-19 nas marchas da OJM para saudar o PR e branquear sua imagem
De queda em queda o país vai descendo para o fundo de todos índices globais. Em Fevereiro último, Moçambique foi apresentado ao mundo, no Índice de Democracia 2020, como um país cada vez mais autoritário. Esteve entre os países que registaram um maior recuo nos direitos políticos e liberdades dos seus cidadãos e na última semana foi classificado como um dos piores países do mundo em termos de Estado de Direito. Mesmo assim, o regime actual continua a rasgar a Constituição e firme na repressão de direitos e na deterioração do espaço democrático. No último Sábado, um grupo de médicos quis sair à rua para manifestar-se contra os raptos, depois de terem sido raptadas três pessoas, incluindo um médico, num espaço de menos de um mês, mas um aparato policial impediu a marcha pacífica sob pretexto de prevenção da propagação da Covid-19, uma alegação questionável numa altura em que o braço juvenil do partido Frelimo, Organização da Juventude Moçambicana (OJM) está a promover concorridas manifestações em todo o país, de apoio e saudação de alegados feitos do Presidente da República, Filipe Nyusi.
Reginaldo Tchambule
O artigo 51º CRM prevê o direito à liberdade de reunião e de manifestação. A Lei 9/91 (11 de Julho), alterada pela Lei 7/2001 regula que a demonstração não necessita de autorizações (artigo 3º, n.º 1). A disposição dispõe que «todos os cidadãos podem, pacificamente e livremente, exercer o seu direito de reunião e de manifestação, sem qualquer autorização prevista pela lei». O artigo 11º da Lei n.º 9/91 prevê especificamente que «a decisão de proibir ou restringir [a liberdade de reunião e demonstração] deve ser fundamentada e notificada aos promotores […] no prazo de dois dias a contar da recepção da comunicação.
No entanto, o direito à liberdade de manifestação não passa de um adereço constitucional, neste momento exclusivamente ao serviço de organizações sociais do partido Frelimo, pois nos dois últimos ciclos de governação de Filipe Nyusi, o governo, com recurso à sua força policial letal e desproporcional tem vindo a limitar de forma ilegal o exercício do direito de reunião e manifestação, repelindo qualquer tipo de euforia nas ruas, culminando, por vezes, em detecções arbitrárias, agressão física, baleamentos, tortura e outros maus tratos.
A violência e a repreensão policiais são de tal forma alarmantes que basta apenas se convocar uma pequena manifestação, para no dia marcado, as ruas, rotundas, entroncamentos, principais centros de aglomerados e entradas dos bairros acordarem inundados de blindados e agentes da polícia armados até aos dentes, com cães raivosos prontos para atacar qualquer um.
A última grande manifestação no consulado de Filipe Nyusi de que se tem memória foi em Março de 2015, quando estudantes e sociedade civil saíram à rua para repudiar o assassinato bárbaro do constitucionalista Gilles Cistac, a primeira vítima dos esquadrões da morte, que caiu antes mesmo de Nyusi completar dois meses no poder. Entretanto, a marcha viria a ser interrompida no meio do percurso.
Médicos e Sociedade Civil sem direito de manifestação
Esta e outras posturas antidemocráticas do actual governo fizeram com que nos últimos anos Moçambique saísse de uma democracia híbrida para um país autoritário, que pisca apaixonadamente para a ditadura, segundo o Índice Global de Democracia. Como se tal não bastasse, está entre os países do mundo que registaram um maior recuo nos direitos políticos e liberdades dos seus cidadãos, e na última semana foi classificado como um dos piores países do mundo em termos de Estado de Direito.
Na semana finda, a polícia voltou a ser chamada para repelir uma marcha, desta vez dos médicos, que protestavam contra a crescente onda de raptos, uma semana depois de ter sido raptado, em Maputo, o médico Basit Gani, no mesmo dia em que foi levado o empresário Takdir do ramo de restauração.
Trata-se de uma marcha cuja autorização do itinerário foi devidamente solicitada ao município de Maputo, no entanto, a resposta negativa, que devia ter sido dada dois dias antes, só chegou no próprio dia, tendo como mensageiros agentes da polícia, armados até aos dentes à porta da Associação Médica de Moçambique, o que frustrou dezenas de médicos e familiares que haviam acorrido ao local massivamente. A justificação usada foi a prevenção da Covid-19.
“Estamos com sentimento de extrema frustração e indignação. É o que posso dizer, porque repare que nós nos sentimos bastante vulneráveis, é por isso que viemos manifestar a nossa indignação perante esta vulnerabilidade”, disse Gilberto Manhiça, bastonário da Ordem dos Médicos de Moçambique, inconformado com a postura das autoridades.
A mesma justificação havia sido usada anteriormente, em Maio, para frustrar uma passeata de estudantes contra a aprovação de um pacote de regalias e bónus absurdos para os funcionários policiais. Meses depois, um grupo de cidadãos que acompanhava Adriano Nuvunga para submeter uma petição contra as portagens foi barrado por um aparato policial com uma exibição de força desproporcional.
Para saudação de Nyusi, à moda Kim Jong Un, não há Covid-19
Estranhamente, decorrem neste momento um pouco por todo o país, manifestações de apoio ao presidente da República, Filipe Nyusi, organizadas pela Organização da Juventude Moçambicana (OJM), braço juvenil do partido Frelimo, fazendo crer que as autoridades estão a usar dois pesos para mesma medida.
As ditas passeatas, que se replicam pelos distritos, têm permitido grandes aglomerações de jovens militantes, que, por vezes, chegam a centenas, mas nunca as autoridades ousaram paralisar ou inviabilizar aquele momento de adoração a Filipe Nyusi, numa suposta saudação aos seus feitos, como se viu recentemente numa marcha na cidade da Beira, liderada pela secretária-geral da OJM, Anchia Talapa.
“Esta saudação ao nosso querido Presidente é por sabermos que ele tem no povo o seu ponto de partida e de chegada na sua governação”, disse na ocasião, Anchia Talapa, rodeada de centenas de jovens na Beira, o que, para muitos, é visto como a privatização do direito de manifestação exclusivamente detido pelos órgãos de Frelimo.