Governo sem condições de acolhimento e protecção das vítimas das uniões prematuras após o resgate

SAÚDE SOCIEDADE
  • Muitas vezes as vítimas voltam a estar expostas

A falta de condições para acolher vítimas de uniões prematuras tem sido um dos principais problemas que o governo enfrenta para garantir o resgate e protecção das vítimas, algumas das quais entregues aos agressores pelos próprios pais ou encarregados de educação em troca de dinheiro, bens e por vezes para pagamento de dívidas. Esta situação faz com que as mesmas, muitas vezes, voltem a estar expostas a este flagelo que continua a roubar o sonho de milhares de raparigas.

Neila Sitoe

Moçambique continua entre os países com maior índice de uniões prematuras, e estima-se que 14% das mulheres, entre os 20 e 24 anos de idade, casaram antes dos 15 anos de idade; e 48% casaram antes dos 18 anos de idade.

Normas sociais e culturais são apontadas como sendo alguns dos factores que interrompe os sonhos de milhares de raparigas e as expõe a um ciclo de violência, muitas vezes com a conivência dos próprios pais e encarregados de educação, que vezes sem conta entregam as suas filhas e protegidas a homens muito mais velhos em troca de dinheiro, dotes ou como forma de pagamento de dívidas.

Angelina Cossa, (nome fictício), de 17 anos de idade, residente no distrito de Chicualacuala, na província de Gaza, foi forçada a unir-se prematuramente quando tinha 14 anos de idade, pelos progenitores, como forma de receberem dote. Conta que no tempo em que esteve forçada a viver com um homem 25 anos mais velho que ela sofreu maus tratos e humilhações.

“Quando tive a primeira menstruação contei para minha mãe, ela disse que eu já era mulher, porque já podia engravidar, não demorou e contou para o meu pai, que depois começou a procurar um esposo para mim, mesmo eu dizendo que ainda queria estudar. Um tempo depois, apareceram várias pessoas na minha casa, minha mãe mandou-me arrumar as minhas roupas para ir com eles. Não queria, mas não tive escolha”, lamentou.

Angelina conta que ao chegar a casa do seu esposo teve um choque, pois percebeu que não era a única esposa dele e que passaria a cuidar de toda a família, visto que era a mais nova das três esposas do marido.

Viveu nessa condição por mais de dois anos e o seu sofrimento só teve fim quando, num certo dia, recebeu em sua casa uma líder comunitária que veio acompanhada de activistas da Kutenga, numa campanha de sensibilização sobre violência e uniões prematuras.

“Como a líder estava no mesmo quarteirão que o nosso, os meus sogros tentarem esconder a verdade, mas ela disse que estavam a cometer um crime e que podiam ser presos, aceitaram com que eu saísse, mas devia deixar a criança que só tinha dois anos de idade, não aceitei. Depois de muito tempo aceitaram que saísse, mas os meus pais não me quiseram receber e diziam que era maldição uma filha tão nova voltar do lar. Tive que ficar na casa de uma activista enquanto sensibilizavam os meus pais para me receberem de volta”, relatou a jovem demonstrando as fragilidades do Governo em garantir a protecção e reinserção social das vítimas das uniões prematuras.

Saiu de casa a busca de sossego e encontrou inferno

Quem também esteve numa união prematura e foi resgatada é Cidália Litango, residente em Chicualacuala, na província de Gaza, que aos 15 anos decidiu fugir de casa e juntar-se ao seu namorado. Hoje, visivelmente arrependida após ter sido literalmente escravizada, desaconselha as outras raparigas a aventurarem-se no lar antes de terem idade e estarem preparadas.

“Para poder continuar os estudos, fui viver com o meu irmão em Chicualacuala, mas a convivência com a minha cunhada não era boa. Maltratava-me e por vezes não me dava comida. Pensei que contando ao meu irmão aliviaria o meu sofrimento, mas para o meu espanto, ele nada fez. Os maus tratos iam piorando e contei ao meu namorado, que me convidou para viver com ele, aceitei na esperança de que estava a me livrar do sofrimento”, contou.

Cidália revela que assim que “colocou os pés” na casa do namorado foi logo atribuída o papel de fazer todas as tarefas domésticas da casa, de tal forma que nem tempo para ir à escola tinha. Enquanto ela assumia o lar, o seu marido viajou para Maputo, para continuar os estudos, mas não antes de a engravidar para ter a garantia de que não regressaria para a casa do irmão.

“Os pais me castigavam e diziam que, como eles é que nos sustentavam, eu tinha que contribuir fazendo todas as tarefas de casa, e de tarde percorrer longas distâncias a empurrar  txova cheia de bidões de água, mesmo quando já se aproximava a data do parto”, disse.

Como se tal não bastasse, Cidália conta que, para além dos maus tratos por parto dos sogros, passou a ser agredida pelo marido sempre que fosse passar férias. Conta que a espancava, violava sexualmente e dizia que sempre recebia reclamações dos pais, devido ao mau comportamento dela.

“Meu marido já não me valorizava, dizia que assim que terminasse os estudos procuraria outra mulher em Maputo porque eu já não servia para ele. Por isso, quando me convidaram para participar das formações sobre violência, com uma líder tradicional que vivia perto de casa e acompanhava o meu sofrimento, não hesitei. Durante as formações, compartilhei a minha estória e fiquei a saber que vivia num ciclo de violência, para além de ter estado numa união prematura. Com a ajuda da líder e dos activistas da Kutenga consegui sair daquele lar e também já sou activista”, relata a vítima.

A grande fragilidade no combate às uniões prematuras

Para Célia Muchanga, coordenadora de violência baseada no género da Kutenga, organização de base comunitária que presta assistência em serviços de adesão e retenção aos pacientes com HIV/SIDA, pacientes vivendo com Tuberculose, violência baseada no género e uniões prematuras, “o grande calcanhar de Aquiles” no combate às uniões prematuras no distrito de Chicualacuala e noutros pontos do país é a falta de casas de acolhimento para as vítimas durante ou após o resgate.

“Uma das grandes dificuldades que nós enfrentamos como Kutenga e como sociedade civil nesta causa das uniões prematuras é a falta de condições de acolhimento para as raparigas resgatadas. E nessas situações temos que fazer algum malabarismo, que é procurar um lugar para a rapariga ficar durante o processo de resgate. Por várias vezes ficam na casa dos activistas, conhecidos ou pessoas que se sensibilizam com o caso, para que não volte para aquela união, pois muitas vezes são rejeitadas pela família e não têm o que comer ou onde dormir”, afirmou.

Célia diz que, só no ano passado, a Kutenga recebeu 10 casos de uniões prematuras, dos quais oito raparigas foram resgatadas e acolhidas nas próprias famílias, mas as outras duas, continuaram nas uniões porque durante o processo de resgate completaram 18 anos, tinham filhos e os pais não quiseram acolhê-las, dizendo que já eram maiores de idade.

Para a activista, a consciencialização e mobilização das comunidades são as principais formas de eliminação destas práticas nocivas que atrasam o desenvolvimento da rapariga em particular e da sociedade em geral.

Líderes comunitários chamados a colaborar no resgate das vítimas

O artigo 31 da Lei de Prevenção e Combate às Uniões Prematuras (Lei 19/2019) estabelece que “aquele que colaborar para que a união com criança tenha lugar, ou que por qualquer outra forma concorra para que produzam seus efeitos, desde que tenha conhecimento de que a união envolve criança, será punido com pena de prisão e multa de até um ano”.

Com efeito, vários líderes tradicionais e religiosos, que antes compactuavam com essas práticas, hoje são agentes de mudança nas suas comunidades e têm estado na linha da frente na colaboração com organizações da sociedade civil e autoridades governamentais na denúncia destas práticas.

Não foi o caso de Adélia Chaúque, representante dos líderes tradicionais do distrito de Chicualacuala, na província de Gaza, que após ter recebido o convite da Direcção Provincial de Género, Criança e Acção Social de Gaza, para participar da formação sobre Direitos Humanos, Violência e Uniões Prematuras abraçou a causa e juntamente com os activistas da Kutenga participa nas campanhas de sensibilização comunitária para a eliminação destas práticas.

“Estes casos eram frequentes no nosso distrito e normalizávamos, mas desde que participei das formações em 2019, quando num bairro tem casos de violência ou uniões prematuras, os líderes me informam e encaminho os casos com o auxílio dos activistas da Kutenga para o Posto Policial ou para o Gabinete”, disse.

Reconhecendo alguns progressos na implementação da lei, Purdina Alberto, assistente social, destaca que o resgate das vítimas de uniões prematuras é um processo onde todos podem participar, desde que tenham conhecimento de uma menor que está a constituir família com uma pessoa maior de idade.

Nos casos em que a vítima se juntou ao agressor aparentemente de livre vontade, a activista destaca a necessidade de apoio psicossocial, para que esta perceba que a união só lhe trará desvantagens, desde o abandono escolar, doenças até responsabilidades de adultos.

“Quando a criança é forçada, faz-se um trabalho de sensibilização e consciencialização dos pais ou tutores. Infelizmente alguns pais ou tutores não aceitam receber as vítimas, tendo que se recorrer a um familiar que possa a acolher, pessoas de boa-fé ou em casos mais graves orfanatos. Isso porque o país ainda não possui infraestruturas para acolher as vítimas, apenas algumas organizações da sociedade civil possuem esses centros, mas poucos. E este é um dos grandes desafios no combate às uniões prematuras”, frisou.

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