O flagelo da violência doméstica em Moçambique

OPINIÃO

Afonso Almeida Brandão

Existindo entre nós uma legislação pensada para prevenir e combater a violência doméstica que tem vindo a ser alvo de sucessivas alterações em prol de uma adaptação mais rigorosa à realidade vigente moçambicana, impõe-se perguntar por que motivo continuamos a ter um número considerável de denúncias arquivadas ou simplesmente ignoradas. Da mesma forma que urge questionar qual o impacto que têm as sentenças condenatórias — se é que elas existiram alguma vez — pela prática do crime de violência doméstica nos agressores, se são adequadas ao caso concreto e se, uma vez compridos, o sistema judicial nas condenações aplicadas é em si mesmo punitivo e reabilitador dos agressores.

A dimensão do flagelo da violência doméstica reclama por respostas urgentes, adequadas à gravidade e reiteração da conduta criminosa do agressor, capazes de assegurar a proteção de todas as vítimas, incluindo as crianças.

O número de denúncias apresentadas junto dos Órgãos de Polícia Criminal a nível Nacional e os resultados trazidos a público quanto ao número de mulheres assassinadas em contexto de intimidade — para além dos casos que não são participados, por questões de medo e de outras razões —, demonstram precisamente que o recurso à violência continua a aparecer como meio possível, porque muito mais fácil, de resolução de conflitos, precisamente quando são confrontados os papéis de género e preconceitos existentes.

Trata-se de olhar para a Violência como fruto da cultura de valores existente na Sociedade em que está interiorizada em cada um de nós, pois são esses valores que vão determinar o campo de intervenção com as mulheres vítimas de violência doméstica, designadamente no tipo de questões que lhes são colocadas, medidas de protecção promovidas e adotadas ou não, sentenças detectadas no âmbito do crime, mas também ao nível dos processos de regulação de responsabilidades parentais.

Esta é a razão pela qual a violência doméstica continua a ser um enorme flagelo na nossa Sociedade, transversal às diversas classes sociais, que reclama uma resposta holística pela defesa da Dignidade da pessoa humana porque estamos a tratar de uma das formas de violência de género, logo, uma questão primordial de Direitos Humanos.

É flagrante continuarmos a assistir à falta de respostas atempada e adequada por parte dos Tribunais quanto à tomada de decisões capazes de garantir a segurança das vítimas, da mesma forma que a normalidade de despachos de arquivamento por falta de prova, na esmagadora maioria das vezes com o argumento que há falta de colaboração da vítima em geral, continuam a ser uma realidade que não nos oferece nada de novo, apesar da violência doméstica ser actualmente “um fenómeno” com maior visibilidade em Moçambique, como aliás tem sido, amiúde, alertado na generalidade da nossa Comunicação Social Moçambicana ao longo de 2021, agora findo. Há que continuar a não abaixar os braços.

O processo crime continua centrado nas vítimas e na sua colaboração com o Tribunal, não obstante as alterações (será?) legislativas e determinações de políticas públicas, razão pela qual não se consegue combater eficazmente o fenómeno. É preciso inverter o paradigma e apostar numa investigação criminal com outros recursos, que lance mão da congregação da diversidade de meios de prova e que tenham por base uma abordagem holística e livre de preconceitos — o que por vezes não acontece no nosso País (dito) Democrático…

No entanto, não tendo ainda alcançado esse patamar, sempre se dirá que a apreciação judicial das situações de violência doméstica não pode estar dependente da vontade da vítima, pois esse é justamente o sentido de o crime ser público com todas as implicações legais daí advenientes. O sistema judicial tem de tratar o crime de Violência Doméstica como crime violento, que efectivamente é!

Sendo que, quando as medidas de coação são aplicadas e não funcionam porque não são respeitadas pelos agressores, que continuam no encalço das vítimas, tem que ficar clara, nessa circunstância, a iminência do agravamento do estatuto coactivo. Inclusivamente, não há que temer a aplicação de medidas privativas da liberdade, pois muitas das vezes é a única forma de barrar a reiteração da conduta criminosa. Tendo sempre presente que a prisão preventiva é uma medida de cariz excepcionalíssimo, de uma vez por todas, no que concerne às situações de identificado elevado risco letal, também é preciso entendê-la como única medida eficaz para a protecção da vítima e eficaz também para o pensamento do alegado agressor e Sociedade em geral, que deixarão de sentir a impunidade da Justiça. Há que passar a mensagem de uma sociedade com tolerância zero à violência, onde prima o respeito pelos Direitos Humanos.

Continuamos também a assistir a sentenças condenatórias — ao que sabemos — que se traduzem na esmagadora maioria das vezes em penas de prisão suspensas na sua execução, o que se traduz na propagação do empoderamento dos agressores em detrimento das necessidades das vítimas. É importante que tenhamos um sistema efectivamente punitivo e reabilitador dos agressores, de um modo eficaz e exemplar para a Sociedade Moçambicana. Nesta senda, é imprescindível  avaliar ainda o impacto dos programas feitos com agressores e apostar na Prevenção contra a Violência de uma forma estruturada, bem como apostar na formação em direitos humanos, em particular na igualdade de género, ao nível de todos os sectores (jardins de infância, escolas, universidades, hospitais, tribunais, etc., etc.) que estejam presentes nas diversas fases de construção e desenvolvimento da pessoa humana, mas também de selecção criteriosa de todos os profissionais que trabalham na área da Violência.

Aqui chegados, resta-nos pedir que a Liga dos Direitos Humanos, em Moçambique, liderada pela corajosa Dra. MARIA ALICE MABOTA, continue a intervir sobre esta questão pertinente. E por falar nela — como pessoa pública que é e que admiramos — resta-nos, neste dealbar do Novo Ano de 2022, encorajá-la a continuar a luta e a intervir em prol dos Direitos Humanos em Moçambique, como tem feito desde 1993 — e que já lhe valeu, em 2010, o Prémio International Women of Courage, patrocinado pelo Governo dos Estados Unidos da América.

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