“Estamos aqui para salvar o mundo”

OPINIÃO

Afonso Almeida Brandão

(Com Amizade e Esperança à Artista Leonor Veiga)

Explico-me desde já: ao ler o título da crónica desta semana, qualquer leitor poderá pensar que se trata de uma frase de parede, retirada de Maio de 68, de uma síntese de um texto de Karl Marx, de uma sincera ironia de George Bernard Shaw ou ainda de uma profecia surrealista lançada para o coração da burguesia.

Nada disso. Estão lá “as aspas” porque a frase tem a ver comigo na lufa-lufa diária da Juventude. Foi-me dito, olhos nos olhos, para me fazer acreditar que o Mundo é feito de transformações, que o que está mal está mesmo mal e que cada geração traz consigo a obrigação de se comprometer com a Igualdade, a Justiça, a Fraternidade e a Entreajuda. É um sonho antigo, circula insistente, ou anónimo em livros, folhetins e panfletos.

Quem me disse a frase já não está vivo, mas evoco, aqui e agora, a sua memória com imensa saudade. Chamava-se Baptista-Bastos e partiu de repente, no meio da esperança inacabada e com sonhos à espera de serem realizados, abrindo-me, ao longo do nosso convívio profissional e amigo, algumas portas socráticas e poéticas. Foi um conhecimento de vários anos, muito significativo, relativamente a outros que me calharam. E é com saudade redobrada que recordo também os nomes dos artistas Carlos Botelho, Cruzeiro Seixas, Pedro Olayo (filho) e Ramiro Relvas. Retive aqui a frase, e, para hoje, porque ainda acredito que a Utopia só morre quando a deixamos morrer. E que é igual aos sonhos, em parte — digo eu.

Mas, ao fim e ao cabo, que quer isto dizer? Assumo a revolução das palavras? Nada disso. APENAS VALE COMO CHAMADA DE ATENÇÃO.

Parto de permissa: não sei quantos sonhos perdeu pelo caminho quem me está a ler. Terá perdido alguns, é inevitável. Assentemos nisto. Terá também, possivelmente, e por outro lado, apreendido em cartilhas que não foram as minhas. Isto separa-nos um pouco.

Existe ainda a circunstância de que o leitor desta crónica é variado: tanto pode ter trinta, quarenta, cinquenta ou sessenta anos, como vinte. E aprendizagens próprias. Mas acredito também no seguinte: em qualquer caso, seja ele qual for, a frase (ou outra como esta) não lhe será  desconhecida e reconhece nela um significado profundo.

Mesmo o leitor mais pragmático (como agora se diz) que me esteja a ler, diz que sim, com a cabeça, embora admita que o coração lhe possa estar pouco fechado. É o sinal dos tempos, das suas características deslizantes. Vamos todos nele e todos o fizemos.

Onde quer o jornalista chegar? — perguntará, naturalmente, o leitor variado. Explico-me então: quando encontrei, em mim próprio, a arte (?) pessoal e pobre de escrever fui fixado pela generosidade obrigatória de qualquer juventude minimamente consciente. Não era só eu que estava em causa no que escrevia, estavam todos.

Esta noção do colectivo julga-se (e acho que o ponto de vista não está certo) incompatível com a individualidade. Até creio no seguinte: a individualidade exigente é um compromisso com a Colectividade. Tenho a convicção de que não existe uma sem a outra. Porque sem nós, sem esse compromisso, não partimos para os outros, não dialogamos; não aprofundamos, não fazemos as contas à vida até ao fim do seu percurso — do nosso percurso. Nem corrigimos os erros.

Volto à frase: é o chamado chavão de jornal, colocado quase à “néon” na mesa de trabalho. Se és jornalista, ou se queres ser, não te poupes. É uma grande obrigação social. Lembra-te dos pobres, dos humilhados, dos que sofrem em silêncio, dos esquecidos. NÃO TE SIRVAS, SERVE.

Estas frases circulavam, surdas, em grupos de combate ou de afirmação — enquanto eu, fixado no papel dobrado sobre a mesa de trabalho, tentava conciliar o que, muitas vezes, não era conciliável, chamava a mim a Ética que me queria fugir, confundia-me, recuperava, à procura da chamada do dever que me daria o rumo certo, entre Totalitarismos de várias cores e Democracias esquivas, hábeis e sinuosas, que sempre “abundaram” entre nós. Escrevi assim: livre, perturbado, chamado à pedra por mim próprio, quixotesco e teimoso.

Estamos aqui para salvar o Mundo”. Afinal a frase de velho e tenaz jornalista, sempre risonho e encorajante, que ficou no lugar vazio da sua sombra — ou talvez não —, que é uma frase retórica e inconclusiva, assumidamente ingénua, quase dogmática — ou talvez não —, que resume o irresumível, continua, apesar de tudo, a ser tão necessária como sempre.

E retira também a sua força da vontade leviana de rir que pode dar a muita gente. O que, bem vistas as coisas, o estado de tudo, não tem importância. A frase sobrevive, insiste, vai ficando para além de nós, é alimento do Espírito.

Outros voltarão a dizê-la, estou certo disso (essa frase e outras), para que o possível possa ser provável, para haver Futuro nos passos que damos. Tão simples como isso. É profissão de Fé, mesmo que seja mais teórica do que prática, para todas as profissões e todas as fés. Para não ficarmos todos mais sozinhos, cada vez mais incrédulos e egoístas.

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