Sociedade Civil cria centros seguros para apoio de mulheres deslocadas

SOCIEDADE
  • Sobreviventes do terrorismo em situação de vulnerabilidade, instabilidade e falta de apoio

Com vista a proteger a integridade física, moral, psicologica, patrimonial e sexual da mulher residente em abrigos para deslocados provenientes de zonas afectadas pelo terrorismo, em Cabo Delgado, organizações da sociedade civil estão a implementar acções que tem por objectivo combater a violência baseada no género e assegurar o empoderamento da mulher e rapariga em situações que neste momento vivem em situação de vulnerabilidade.

Neila Sitoe

Desde 2017, a província de Cabo Delago, que se localiza a norte de Moçambique, tem sido aterrorizada por rebeldes armados, sendo alguns ataques reclamados pelo grupo extremista Estado Islâmico. Segundo o Projecto de Registo de Conflitos ACLED, o conflito já provocou mais de 3.100 mortos e mais de um milhão de deslocados, incluindo crianças e mulheres que vivem em condições deploráveis.

Em resultado das condições deploráveis em que vivem, muitos são os relatos de violência e assédio contra mulheres, incluindo indícios de troca de ajuda militar por sexo.

Por essa razão, a sociedade civil tem estado a desenvolver acções com vista a aliviar o sofrimento de mulheres e raparigas sobreviventes do terrorismo na província de Cabo Delgado.

Entre as acções destacam-se programas que garantem a saúde, segurança e bem-estar de todas as mulheres; ao mesmo tempo que a sociedade civil está empenhada em promover educação, capacitação e desenvolvimento profissional para as mulheres; apoiar o empreendedorismo de mulheres e promover políticas de empoderamento através das cadeias de suprimentos de iniciativas voltadas à comunidade e ao activismo social.

Delfina Marcos, de 48 anos de idade, actualmente residente no distrito de Metunge, viúva e mãe de seis filhos, dos quais dois desaparecidos durante os conflitos, diz que perdeu todos os bens durante os ataques e já tinha perdido a esperança de um dia ter uma vida minimamente estável.

“Primeiro notamos o aparecimento de carros que circulavam sempre, depois as mesmas pessoas começaram a abrir mesquitas e madrassas onde treinavam lutas, usando facas, catanas e outros objectos. Achamos estranho, mas nada fizemos, só que depois vimos que vários jovens já frequentavam as mesquitas e madrassas dessas pessoas que não sabíamos de onde vinham, aí começamos a ficar preocupados”, explicou.

“Não sei se meus dois filhos e o meu marido estão vivos ou mortos”

Delfina afirma que depois de um tempo constataram que os mesmos jovens que frequentavam as mesquitas desapareceram, os pais procuraram saber nos bairros vizinhos e não tiveram nenhuma explicação, facto que os deixou preocupados. Depois desse episódio iniciaram os ataques.

“Quando os ataques iniciaram, muitos de nós preferimos não abandonar as nossas casas, apenas fugíamos e nos escondíamos porque pensávamos que fosse algo passageiro, mas vimos, depois, que a situação estava a agravar-se quando iniciaram os sequestros, as matanças e a vandalização de edifícios”, revelou.

A fonte conta que fugiu com o seu marido e os seus filhos, mas depois, sem se aperceber, os seus dois filhos mais velhos e o seu marido foram por um outro caminho e nunca mais os viu, até aos dias de hoje não sabe se estão vivos ou mortos.

“Desde que saí da vila, naquele triste dia, nunca mais voltei, a situação que me inquieta até hoje são os meus dois filhos e o meu marido, que não sei se estão vivos ou mortos. Eu e os outros meus filhos fomos levados para o abrigo e passamos por várias dificuldades, mas desde os finais de 2020 a situação minimizou quando iniciei a participação nos grupos de espaços amigos das mulheres”, desabafou.

A triste narrativa de quem perdeu quase tudo

Quem também perdeu para além de todos os seus bens, a auto-estima e a vontade de viver foi Jacinta Amade, de 23 anos de idade, que teve aborto espontâneo enquanto fugia dos terroristas, depois de ter sido abandonada pelo seu parceiro que foi se unir aos terroristas na esperança de uma vida melhor.

“Meu marido estava desempregado, sobrevivíamos do pouco que ele conseguia quando conseguia aqueles trabalhos que duravam um ou três dias no máximo, e quando iniciou o aparecimento das mesquitas ele ia lá treinar e depois começou a vir com dinheiro para casa. Certo dia, disse que tinha de viajar para longe, com os homens da mesquita, para ir trabalhar e que não sabia se voltaria ou não, assim sendo eu devia seguir a minha vida sem esperar por ele”, relatou.

A fonte conta que esse balde de água fria foi apenas o princípio de dores, pois no início do ano 2018, enquanto fugia dos terroristas, teve um aborto espontânea já com uma gravidez de sete meses e teve todos os seus bens queimados pelos terroristas.

“Não esperava por todo esse caos na minha vida, de repente tudo começou a dar errado e como se não bastasse perdi tudo o que tinha. O terrorismo, para além de me fazer perder os bens, me fez perder a vontade de viver, mas como a vida segue, tive que continuar com a minha. Depois de muitos dias sem saber se sobreviveria, fui levada para o centro de acolhimento de deslocados, onde passamos por várias dificuldades porque, por vezes, a ajuda demorava chegar e ficávamos muito tempo sem nada a fazer, até que me convidaram para participar de encontros de mulheres, onde aprendi a produzir tapetes e esteiras, e também temos momentos de lazer de canto e dança”, louvou.

Ajudar as mulheres a seguir em frente

Isabel Prostramo, coordenadora provincial da Muleide em Cabo Delgado, disse que a organização que representa, em parceria com o Fórum Mulher e financiada pela UNFPA Mozambique (Fundo das Nações Unidas para a População), reconhecendo a situação de vulnerabilidade, instabilidade e falta de apoio específico para mulheres sobreviventes do terrorismo em Cabo Delgado, decidiu criar espaços seguros amigos das mulheres.

Estes centros ocupam parte das mulheres que representam 80% dos deslocados e que agora desenvolveram novas habilidades para a vida, pois, apesar dos traumas, precisam seguir em frente.

A coordenadora explica que nestes espaços são desenvolvidas actividades de habilidades que tem um impacto positivo, pois as mulheres e raparigas superam os seus entraves e seguem uma escalada de êxitos e realizações, resumidas em dois eixos fundamentais.

“O primeiro eixo é de desenvolvimento de habilidades de controlo pessoal, onde são desenvolvidas competências de tomada de decisões e resolução de problemas, pelos quais se espera que a mulher ou rapariga torne-se competente na identificação dos problemas, definição de metas, estabelecimento de soluções e avaliação das consequências dos seus actos e o segundo, que é de interacção social, é importante para enfatizar o treinamento da habilidade de comunicação eficaz para que as mulheres e raparigas tenham maneiras eficazes para evitar mal-entendidos, conhecer novas pessoas e estabelecer e manter amizades”, argumentou.

“É fundamental que no primeiro momento do trabalho se ensine as beneficiárias como estabelecer metas realistas, assim como submetas, indicando os benefícios em avaliar e recordar os progressos já alcançados, bem como lidar com o sucesso e mesmo com o fracasso ao longo da vida. É também importante que neste primeiro momento da intervenção se favoreça ainda o desenvolvimento de habilidades, como lidar com o stress, através do ensino de técnicas de relaxamento, além de lidar com sentimentos de raiva e frustração, os quais contribuirão para a redução de reacções impulsivas”, assegurou.

O projecto que tem estado a combater a violência baseada no género e empoderar mulheres e raparigas sobreviventes do terrorismo através de actividades de habilidades para vida (produção de tapetes, esteiras, etc) já abrangeu 180 mulheres deslocadas internas, incluindo as nativas, sendo 20 raparigas e 30 mulheres no distrito de Ancuabe; 40 raparigas e 30 mulheres em Metunge; e 35 raparigas e 25 mulheres na cidade de Pemba.

Refira-se que, em Dezembro último, um estudo sobre impactos do conflito para a mulher em Cabo Delgado constatou violações dos direitos das deslocadas e ausência de apoio coordenado com foco nas relações de género. E em Metunge, onde parte significativa dos deslocados procura refazer a vida, as violações sexuais aumentaram, segundo constatações constantes do estudo com o título “Causas e Determinantes do Conflito em Cabo Delgado e o seu Impacto na Vida das Mulheres”, elaborado pelo Centro de Estudos Estratégicos da Universidade Joaquim Chissano, em parceria com a ONU Mulheres.

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