Moçambique e o ambíguo relacionamento com o Ocidente

OPINIÃO

Luca Bussotti

O cenário moçambicano tem assistido, nestes últimos dias, a uma decisão que o governo assumiu e que manifestou diante da Assembleia Geral das Nações Unidas, com relação à ocupação russa da Ucrânia. Uma decisão que não aqueceu muito o debate interno, mas que viu algumas posições expressas quer na imprensa, quer (sobretudo) nas redes sociais, e que mereceriam mais atenção. Moçambique, assim como fizeram muitos outros países africanos (25 no total), se absteve ou não votou, ao passo que outros 28 votaram a favor da resolução, e apenas um (a Eritreia) votou contra, portanto, alinhando-se abertamente com a intervenção militar da Rússia. E isto apesar de a União Africana ter condenado tal intervenção. O voto expresso pelo governo moçambicano vai além da questão específica – entretanto, extremamente importante –, pois as raízes do relacionamento com a Rússia, sobretudo com o Ocidente, são antigas e complexas. O voto acima recordado representa apenas o último dos episódios de uma postura que sempre foi ambígua.

De onde vem esta ambiguidade? Acima de tudo, do colonialismo. Não podemos esquecer que foi o Ocidente – no caso de Moçambique por intermédio de Portugal – a explorar o continente africano durante séculos, negando aos seus territórios aquela independência política e económica tanto desejada. No caso das antigas colónias portuguesas, como Moçambique, foi necessária uma guerra sangrenta e demorada para que a tal independência se tornasse realidade. Em segundo lugar, o sistema de alianças do imediato pós-independência: Moçambique, assim como todos os PALOP, resolveu abraçar o socialismo, e esta opção foi apoiada por parceiros como a antiga URSS, Cuba e a China. Vários países ocidentais tornaram-se logo bons parceiros de Moçambique, tais como os países da Europa do Norte, a Itália e outros, mas Maputo manteve relações tempestuosas com o governo americano. Com efeito, se Washington evitou tomar o mesmo posicionamento que teve com relação a Angola (cujo governo foi reconhecido apenas em 1993, por Clinton), mesmo com Moçambique as ambiguidades não faltaram. Os Estados Unidos, directa ou indirectamente, eram o país que mantinha de pé o regime sul-africano do apartheid que ameaçava Moçambique. Em resposta, Samora Machel expulsou, em 1981, seis diplomatas americanos, acusados de pertencerem à CIA. Em suma, nada de tranquilo no relacionamento com o país líder do Ocidente. Com base nisso, o anti-americanismo se tornou elemento característico de boa parte da classe política moçambicana presente até hoje. Entretanto, quando a URSS, mediante o COMECOM, recusou – em 1980 e ainda em 1981 – a entrada de Moçambique naquele organismo, de facto abriu-se o caminho para uma aproximação mais estreita de Maputo ao Ocidente.

E foi provavelmente neste último período, desde 1984 (adesão de Moçambique ao FMI e ao Banco Mundial), que as ambiguidades no relacionamento com o Ocidente se aprofundaram. A adesão de Moçambique a estes organismos internacionais, evidentemente dominados pelos Estados Unidos, foi – pelo menos do lado da classe política local – uma escolha obrigada, feita sem nenhuma convicção. Isso levou não apenas a aderir aos instrumentos técnicos para que a ajuda financeira indispensável se pudesse concretizar (o país estava à beira da falência), mas também aquela democracia, associada ao respeito pelos direitos humanos, que o partido no poder sempre tinha recusado. A ambiguidade abriu-se ainda mais com a queda do Muro de Berlim e com a falta de escolhas possíveis, no xadrez internacional, por parte de Maputo. O relacionamento com os “doadores” ocidentais se baseou numa ambígua troca: rios de dinheiro para a consolidação do processo de paz ao governo e ao maior partido de oposição, a Renamo, contra a adopção de um modelo de governação teoricamente democrático, mas em que as eleições eram puramente confirmativas, pois as oposições não tinham possibilidades efectivas de ganhar. Esta contradição se protraiu até hoje, com um governo cada vez menos satisfeito do seu relacionamento com um Ocidente que impunha condições políticas para soltar sua ajuda económica e um Ocidente cada vez mais frustrado de que o “modelo moçambicano” mostrava limites enormes, por vezes até intoleráveis. Foi no seio deste complexo relacionamento que Moçambique se aproximou de novo não só à China, mas à própria Rússia. Não podemos esquecer que a Rússia se projectou de novo no continente africano depois de 2014, ou seja, quando as primeiras sanções por parte do Ocidente começaram a ser aplicadas depois da ocupação, por parte de Moscovo, da Crimeia. E que apenas dois anos mais tarde Moçambique passou praticamente pela mesma situação devido ao descobrimento, por parte da comunidade internacional da dívida oculta, com consequente corte do Budget Support. Com a guerra em Cabo Delgado, a presença militar russa se fortaleceu (mediante a Wagner), e Moçambique continuou a cultivar suas boas relações com Putin, sem conseguir cortar aquelas com o Ocidente, de que ainda depende em larga medida do ponto de vista financeiro.

Foi esta, em poucas palavras, a histórica ambiguidade das relações com o Ocidente, e sobretudo com os Estados Unidos e os organismos internacionais que Washington controla, e que levou o governo de Maputo a um voto de abstenção contra a invasão russa na Ucrânia… É desta ambiguidade ( e do anti-americanismo acima recordado) que é preciso partir, não apenas para compreender o sentido deste voto, mas sobretudo para que o governo delineie com maior clareza o seu posicionamento estratégico no cenário internacional, salvo continuar a querer jogar (perigosamente) em duas mesas, que, pelo que parece, em poucos dias não serão mais disponíveis.

Facebook Comments