Qualidade académica e os desafios das “defesas”

OPINIÃO

Luca Bussotti

Ultimamente, o assunto relativo à qualidade académica voltou com força. Iniciativas, debates, e até seminários internacionais para os 60 anos do ensino superior em Angola e Moçambique. Isso é muito bom, entretanto quando se fala muito em volta de um assunto significa, geralmente, que este assunto resulta ainda problemático. Não quero falar do posicionamento da academia moçambicana (assim como angolana) nos vários ranking continentais e internacionais, que de um ano para o outro assinalam situações bastante estáveis, com poucas melhorias. Com efeito, dentro do debate em curso e fora de momentos de (auto)celebração, existe um aspecto, entre muitos, que geralmente não é considerado importante, mas que representa um dos elementos centrais para tentar melhorar a qualidade do ensino e da pesquisa académica, além da sua produção científica.

Trata-se do momento de culminação de curso, o momento final de um percurso universitário, quer a nível da licenciatura, quer da pós-graduação, incluindo doutoramento. A ideia é de que esta etapa constitua o fim da caminhada académica do estudante. O que constitui verdade, não se trata de um acto solipsista, isolado, pois o estudante trabalhou com um supervisor, submeteu o trabalho a uma direção científica, que o aprovou, se calhar depois de ter feitos reparos, e finalmente foi defendido publicamente diante de um júri (e, muito frequentemente, de um público mais ou menos vasto). E no entanto, principalmente na área das ciências sociais, o trabalho contou com entrevistas, conversas, envolvimento de muita outra gente…

O acto final de um percurso académico é, portanto, um momento colectivo e ao mesmo tempo individual, em que a instituição participa, cada um com o seu papel, da produção científica apresentada por parte do candidato (ou da candidata). Existem várias formas de abordar esta etapa, por parte do júri: pela minha experiência directa, mesmo deste ponto de vista, as mudanças, na academia moçambicana, não foram tão rápidas como era de esperar. Geralmente, a postura do júri se aproxima mais a de um tribunal do que a de um colectivo que se co-responsabiliza juntamente com o candidato para o resultado final. A defesa de um trabalho é um acto pedagógico, não um julgamento com sentença final…

A filosofia com que se olha para um trabalho de fim de curso é fundamental para que este acto pedagógico constitua um momento de crescimento, individual e colectivo: para que isto aconteça, algumas condições deveriam ser previamente criadas. Acima de tudo, em muitos casos, é visível a falta de trabalho colectivo do lado da instituição. Se o candidato apresentar um trabalho com muitas falhas formais (citações erradas, bibliografia incompleta, até erros linguísticos), o trabalho não deve ir para o júri. Em muitas circunstâncias isso não acontece, e assim a maioria do tempo durante a defesa é gasto em estéreis discussões sobre questões meramente formais, que deveriam ter sido resolvidas anteriormente, num diálogo entre o candidato, o supervisor e a direção científica da faculdade ou do curso… Este espectáculo, além de não trazer nada de novo no debate académico, aborrece o público presente que também não vai aprender absolutamente nada de um diálogo que se esperava ser académico, científico e de interesse de toda a plateia.

Se isto retira a partida valor à defesa, tornando-a momento censório e legalista mais do que pedagógico, o outro aspecto que tem a ver com a instituição recai na escolha do oponente (pressupondo que o supervisor esteja a par do assunto abordado no trabalho que está a acompanhar). O oponente deve ter competências específicas para avaliar o trabalho e sobretudo dialogar com o candidato no dia da defesa e, se for o caso, nos dias seguintes, para apresentar um trabalho definitivo com ainda mais qualidade. Acontece, em muitos casos, que o oponente não seja exatamente da área científica em que o trabalho que deve avaliar se insere, mas sim de áreas afins. Resultado: a tendência do oponente é de puxar a discussão, ao longo da defesa, para a sua área de competência, assinalando “o que falta”, e não o que consta do trabalho. Este hábito, no geral, é péssimo. Com efeito, fora de questões que sempre podem verificar-se, tais como a falta de uma referência fundamental, ou de uma teoria incontornável para tratar do assunto abordado, o oponente deve avaliar o que está escrito no trabalho. É aquela a rem controversiam, a matéria que deve ser julgada, evitando, portanto, puxar o terreno da conversa para âmbitos que ele melhor conhece, mas que se calhar são marginais com relação ao assunto tratado no trabalho de culminação de curso. E isso pode levar a desvalorizar o trabalho apresentado, evidenciando lacunas que, na verdade, podem não existir.

Por isso, é necessário que o oponente tenha competências específicas sobre o assunto: só assim este pode ser aprofundado, analisado e até criticado, pois o terreno da conversa deve ser o escolhido pelo candidato (e pelo supervisor), não pelo oponente. Assim, como quase que constantemente, o oponente costuma perguntar, lá para o fim da discussão: e qual seria a sua ideia para ultrapassar este problema que apresentou no seu trabalho? É uma pergunta fatídica, que geralmente não falta… E, mais uma vez, é a pergunta errada (salvo excepções sempre possíveis): trocar um trabalho científico, que apresenta resultados em termos de compreensão de um fenómeno, para uma consultoria que pretende resolver um problema, constitui a pior forma para enfrentar uma defesa, no papel de oponente. Não se trata, aqui, de lesa majestade ou de manter a “objectividade” do trabalho científico: é que pesquisa e consultoria seguem duas lógicas completamente diferentes, a partir da pergunta de partida, portanto, se o trabalho é de cunho académico, a preocupação é fornecer elementos para compreender o fenómeno investigado, não para solucioná-lo. Esta tarefa deve caber a outros especialistas, não a quem investiga… Assim, usando a competência específica do oponente como compenetrando na lógica compreensiva do assunto abordado é que um trabalho defendido poderá melhorar em termos qualitativos, até desaguar numa publicação académica, que é o objectivo final de qualquer trabalho científico.

E aqui entra, de novo, a instituição: depois de o trabalho, sobretudo a nível da pós-graduação, ter sido defendido e entregue na sua versão final, o que se faz com ele? Se a instituição não tiver uma revista ou, pelo menos, uma série de livros ou publicações institucionais, o trabalho vai ficar engavetado para sempre. O circuito virtuoso se quebra, mais uma vez, e o trabalho volta a assumir as características de uma actividade meramente individual e até privada, que culmina com um certificado e uma nota final (mais uma vez, questões de forma e de legalidade!) emitido por parte de um tribunal académico, não de uma instituição de ensino e pesquisa. Nada de partilha de um saber que emergiu sim de uma defesa, mas que foi antecedido por pesquisas que envolveram segmentos importantes da sociedade (e da instituição académica de referência), mas de que aquela mesma sociedade não viu nenhum retorno.

Tudo isto, e muito mais, ronda a volta da defesa de um trabalho de culminação de curso. Uma das actividades possíveis para que universidades e institutos superiores possam ultrapassar estes constrangimentos podia ser uma formação regular, orientada especificamente para o momento da culminação do curso, com os aspectos aqui assinalados e que representam apenas uma parte dos elementos centrais desta importantíssima etapa do trabalho académico.

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