A África, o novo bipolarismo e as perspectivas do Sul

OPINIÃO

Luca Bussotti

A crise russo-ucraniana fez voltar o mundo a cenários parecidos aos da guerra fria. Por um lado, Rússia com aliados importantes como a China, por outro, o eterno Ocidente, com os Estados Unidos na liderança e os países europeus atrás deles, com poucas excepções. No meio, uma série de países surpreendidos com a aceleração geopolítica actual, e pressionados dos dois lados: entre eles, vários da Europa do Leste que já entraram na União Europeia, mas que mantêm laços estreitos com a Rússia, tais como Hungria e Polônia, e quase todas as nações africanas.

A diplomacia africana está acostumada a ficar no meio, pois o interesse nacional continua a prevalecer, e assim o bilateralismo dita ainda grande parte das opções estratégicas dos países africanos, apesar da existência da União Africana e de aglomerações sub-continentais, tais como a SADC, a CEDEAO, etc. Moçambique não é excepção: a sua diplomacia sempre procurou manter boas relações com os dois blocos, embora com uma nítida preferência para o bloco soviético. Com efeito, apesar da adesão formal ao marxismo-leninismo em 1977, Moçambique fazia parte dos países não alinhados, e conseguiu manter excelentes relações com países democráticos, mas não socialistas, tais como todos os países do Norte da Europa, Itália, Alemanha, Espanha e outros.

Na altura da grande viragem para o Ocidente, por volta da década de 1990, Moçambique pareceu abraçar de forma convencida os princípios (além das ajudas financeiras) do Ocidente, a partir do ex-inimigo americano, cuja cooperação bilateral, mediante a USAID, é a primeira, em termos de desembolso de valores, já há muitos anos. Entretanto, quando o urso russo acordou da sua crise e principalmente com Putin voltou a se propor como potência mundial com uma política africana própria, Moçambique não teve receio em voltar a ter boas relações com os antigos amigos, agora já transformados em capitalistas, mas não liberais do ponto de vista político, mas sim autoritários. Mesma coisa foi feita com a China, cuja ascensão em África (e em Moçambique também) foi imparável, assim como com relação a outros países emergentes, tais como Índia, Turquia, Vietnam e outros.

Em suma, a diplomacia moçambicana voltou a ter aquela postura de querer “ficar no meio” para tirar o maior benefício possível do ponto de vista dos seus interesses nacionais: lá onde os Ocidentais não podiam ou não queriam chegar, eram os Chineses ou os Russos a avançar, e este cenário continuou até a crise russo-ucraniana que rebentou faz mais de 100 dias. O Ocidente chamou a recolha todos os países do mundo, mas particularmente os que achava serem aliados, principalmente no continente africano. Entretanto, houve surpresas: potências regionais como África do Sul, Angola e o próprio Moçambique se abstiveram na resolução proposta junto à Assembleia das Nações Unidas contra a invasão russa na Ucrânia, ao passo que o governo moçambicano começou a enveredar estratégias de evidente aproximação junto à Rússia e a outros países autoritários, tais como Ruanda e Uganda, no continente africano. Ao mesmo tempo, os laços com o Ocidente não foram cortados, aliás, o Fundo Monetário Internacional prometeu a retomada da sua ajuda a Moçambique, num sinal de distensão depois das crispações devidas à gestão da dívida oculta.

O presidente do Senegal e da União Africana, Macky Sall, voou para Moscovo, com o objectivo de se encontrar com Putin, tentando uma mediação que cheira aproximação do continente junto à Rússia ou, pelo menos, a tentativa de sair da jaula em que o conflito prendeu os países africanos.

O ponto é justamente este: a larga maioria dos países africanos não está à vontade com esta escolha: Rússia ou Estados Unidos, autoritarismo post-soviético ou liberalismo neo-colonial. Não uma grande opção, de facto…Assim como na altura da guerra fria, o continente africano e os outros estados do Sul global precisariam de uma identidade própria e de políticas estratégicas que tutelem os seus interesses, saindo do perigoso jogo de cintura que vai garantir principalmente os interesses das grandes potências, sejam elas ocidentais ou orientais, e de algumas elites políticas africanas. Se, nas décadas da contraposição URSS-EUA, tal perspectiva se expressou na organização dos países não alinhados, hoje ainda não se vislumbra um sujeito que possa liderar o Sul global. No Sul, as potências hegemónicas e que poderiam liderar os países deste hemisfério estão em crise: a Índia já não é aquela referência de civilização e paz que tínhamos conhecido com Ghandi e seus sucessores, o Brasil está mergulhado em eleições complicadas e, com Bolsonaro, tem de facto abandonado a estratégia conhecida como a do Atlântico Sul, sobretudo mediante a ZOPACAS e a aproximação ao continente africano mediante a cooperação Sul-Sul, a África do Sul também já não expressa os valores que, mediante Nelson Mandela, a tornaram referência internacional para a saída da época do apartheid de forma pacífica, e o próprio ANC está atravessando uma crise sem precedentes.

É provavelmente esta ausência de uma liderança no Sul global que está a empurrar muitos países africanos, entre os quais Moçambique, para um novo abraço com a Rússia ou, em África, com o Ruanda. A opção para um retorno a políticas autoritárias dificilmente será aceite por parte de populações que já estavam iniciando a viver em ambientes mais democráticos e tolerantes, ainda por cima sem aquela eficiência que um país como o Ruanda há anos está mostrando, sob a liderança de Paul Kagame. Alguém poderia até aceitar a troca falta de democracia-eficiência do Estado, mas um autoritarismo associado a ineficiência burocrática, corrupção, marginalização de vastos estratos sociais e grupos étnicos não parece a receita ideal para que Moçambique possa sair da crise em que está mergulhado há anos.

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