“O nosso não-alinhamento foi premiado” – Arlindo Chilundo

DESTAQUE POLÍTICA
  • Chilundo explica o enquadramento histórico da eleição a membro da CS da ONU
  • “Para este resultado todo, também temos que olhar para o nosso percurso histórico”
  • “O governo de hoje encontrou blocos e fundações construídas”
  • “É difícil ser amigo de todos, mas essa é a nossa filosofia, beneficiar de todas as partes”
  • “Os conflitos que amiúde vão surgindo derivam do défice na destreza diplomática”

O académico e antigo vice-ministro de Educação, Arlindo Chilundo, considera que para entendermos o resultado da eleição de Moçambique, por unanimidade, a membro não permanente do Conselho de Segurança da ONU, é preciso olhar “para o nosso percurso histórico”. Chilundo, um dos poucos bibliotecários da nossa história recente e, com passagens em várias pastas governativas, explicou em entrevista ao Evidências que a recente “campanha” não foi determinante para o sucesso, mas argumenta que, sem ela, “os indecisos não teriam votado em nós”. Segundo o académico, sem a campanha, “é certo que passaríamos com dois terços, mas ficaríamos preocupados com essa outra parte”. Na conversa cujos excertos mais relevantes destacamos a seguir, o académico traça o enquadramento histórico de Moçambique, o que para si foi determinante para que Moçambique tivesse os votos de todos os membros, com a excepção de Venezuela, que não exerceu seu poder de voto por não ter as quotas em dia.

Nelson Mucandze

Moçambique foi o único a obter a totalidade dos 192 votos na eleição a membro não permanente do Conselho de Segurança das Nações Unidas. Doutor Chilundo, como conseguimos este resultado e como vamos emprestar o nosso saber na resolução de guerras, estando nós também mergulhados num conflito?

– Eu queria, em primeiro lugar, felicitar ao governo do dia pela campanha muito bem-sucedida, que culminou com a vitória expressiva, uma vitória marcada pela unanimidade de todos os membros que puderam votar.

Isto significa que houve um trabalho meticuloso, que foi feito de tal maneira que conseguimos consertar e consolidar amigos e, também, aqueles que de certa maneira pudessem ter alguma reticência, votaram em nós. Isso é muito significativo, mostra, portanto, em poucas palavras, que Moçambique, neste momento, é muito popular a nível de concerto das nações.

Mas, para este resultado todo, também temos que olhar para o nosso percurso histórico, somos um país muito recente. Completamos agora 47 anos, mas com um percurso prenhe de realizações e acontecimentos. Só para conquistar a independência foi necessário desencadear a Luta Armada de Libertação Nacional, e esta luta foi uma espécie de academia para formação dos primeiros quadros que haviam de dirigir este país logo depois da independência.

A diplomacia que nós celebramos, hoje, tem as suas fundações nessa altura. Por exemplo, durante a Luta Armada de Libertação Nacional nós estávamos em plena Guerra Fria, isso significa que havia dois blocos distintos, mas mesmo dentro do outro bloco, o não ocidental, havia também uma pequena diferença, entre o bloco soviético e a China. Isso também podia ter-se reflectido na Luta de Libertação Nacional, mas os nossos fundadores souberam lidar com essas diferenças todas que havia no concerto das Nações.

Mobilizaram a opinião pública internacional no sentido de apoiar a luta de libertação de Moçambique, mas não era só a luta armada, incluía também a diplomacia.

Está a querer dizer que sempre houve consenso em relação a Moçambique?

– Por isso, nessa altura, nós vimos uma Frelimo apoiada por países do Leste, incluindo a China, mas também pelo terceiro mundo, os países não alinhados. E no ocidente, fortemente dominado pela NATO, nós tivemos alguns países que pertenciam à NATO e outros não, também que apoiavam a Luta de Libertação Nacional. Isto significa uma destreza por parte da própria Frelimo.

Durante esse percurso da Luta Armada de Libertação Nacional, havia uma diferença na percepção dos assuntos entre os países do Leste. A União Soviética e a República Popular da China não convergiam na forma de analisar fenómenos, a China dizia que havia Frentes de Libertação autênticos e não autênticos, os autênticos, para eles, eram aqueles que estavam mais alinhados. E os não autênticos, no caso de Angola, ficou muito bem clara em que a China apoiava o FNLA, não MPLA. Mas no caso de Moçambique, nós tivemos a destreza de ter as duas potências a apoiar Frelimo. Tanto a União Soviética, como também a China, não houve conflitos e fomos capazes de conter essa convivência. O que significa que o não-alinhamento de hoje tem as suas raízes nessa altura.

Logo depois da independência houve uma grande euforia, na altura, a Frelimo declarou-se um partido de orientação marxista-leninista, o que naturalmente nos valeu muitos inimigos globalmente. É certo que a política da Frelimo foi sempre de ganhar mais amigos, mas esta declaração criou-nos alguma crispação porque estávamos em plena Guerra Fria, isso significava um alinhamento, apesar de termos dito não sermos.

Para alguns países de Ocidente parecia haver um alinhamento ideológico com União Soviética e a China, isso valeu nos a guerra que tivemos (a guerra dos 16 anos), mas ao longo do percurso foi possível o governo do dia explicar-se melhor no concerto das Nações que continuamos não-alinhados, apesar da opção política que tivemos.

Vimos uma diplomacia pujante dirigida pelo presidente (Joaquim) Chissano, mas antes Samora Machel, que liderava esta equipa. Primeiro, foram contactos intensos com a Grã-Bretanha, deixando claro que Moçambique não era um país comunista, porque havia essa percepção de que eram comunistas. E a África do Sul e a Rodésia usavam esse epíteto de luta contra o comunismo para legitimar a sua agressão a Moçambique .Mas foi preciso dissipar essa ideia e mostrar que Moçambique não era um país comunista, e graças a Margareth Thatcher (Grã Bretanha), conversando com Ronald Reagan, fomos recebidos nos EUA e ficou dissipada a ideia do comunismo e começa o processo de descompressão de conflito ideológico que aparentemente existia e nós também somos aceites no concerto das Nações como um país não alinhado.

E, houve reformas que naturalmente existiram, em 1990 adoptou-se uma constituição multipartidária e que criou bases para o país que somos hoje. Mas esta linha de não-alinhamento nunca foi abandonada, ela continuou e foi cultivada.

“Moçambique nunca foi um país comunista”

Mas a guerra civil…

Na guerra de desestabilização, que era uma guerra fundamentalmente ideológica, era uma guerra que se fundava também nessa desinformação de que Moçambique estava a construir um regime comunista. E era necessária uma diplomacia muito forte para que se pudesse dissipar isso, e mesmo depois da morte de Samora Machel, o presidente Joaquim Chissano continuou convencendo o mundo de que não somos comunistas e houve todo um processo de democratização do país, e que, naturalmente, assegurou que fizéssemos mais amigos do que inimigos.

É assim que sobrevivemos a tantas situações em que o país estava dilacerado, mas foi possível mobilizar apoios das Nações Unidas, e vieram apoiar-nos também no processo de democratização do país.

No meio de todo este processo conturbado, Moçambique e os moçambicanos foram ganhando muita experiência na resolução de conflitos, primeiro a Luta Armada de Libertação Nacional, que acabou evoluindo para um conflito armado por causa da intransigência do Governo português de conversar e foi uma guerra, e não há nenhuma guerra que termina sem armistícios e acordos, por isso tivemos os acordos de Lusaka, negociamos a paz e conquistámos a independência. Depois tivemos a guerra dos 16 anos, que não foi vencida porque uma parte foi totalmente dizimada, foi o consenso dos moçambicanos, foi a vitória da paz. Todos os moçambicanos que aspiravam pela paz sentaram-se e conversaram. Essa é a experiência que podemos partilhar.

Disse na sua introdução que nós temos problemas, temos o terrorismo em Cabo Delgado, mas é exactamente por isso que hoje estamos no Conselho de Segurança das Nações Unidas, porque o mundo acha que temos alguma experiência para emprestar, mas nós próprios, humildemente, sabemos que vamos aprender lá.

Mas é justamente para podermos limar as arestas. Mesmo no acordo de Roma, muito tempo depois começamos a ter conflitos no Centro, tivemos a Renamo Armada, Junta Militar, e isso significa que, apesar da nossa capacidade de ultrapassar os conflitos, precisamos, em algum momento, de aprender, e essa convivência vai nos ajudar a aprender e ganhar mais, de tal maneira que o país possa ter uma paz duradoura e definitiva.

Está a dizer que a nossa posição política foi sempre coerente, que desde a construção de Moçambique, como república independente, com tendência mono-partidária, até a introdução de multipartidarismo, a nossa posição não foi beliscada?

– Na verdade não, houve um crescimento, porque o que aconteceu foi uma propaganda forte de alguns países ocidentais, de que Moçambique era um país comunista, nós nunca fomos comunistas. Nós desejamos ser um país socialista, isso sim. Mas um país socialista não é um país comunista. Mas a propaganda era tão forte que outras pessoas inimigas do comunismo eram sensibilizadas que nós estávamos a tentar construir o comunismo.

Portanto, era um país de orientação socialista, mas mesmo depois do acordo de Roma a Frelimo tinha declarado no quinto Congresso (1989) que somos uma social-democracia, e isso ajudou muito na comunicação. Nunca houve, pelo menos na minha percepção daquilo que eu vi do percurso histórico do nosso País, uma tendência comunista.

“O governo de hoje encontrou blocos e fundações construídas”

Mas esse percurso todo, até que ponto influencia, de forma directa, para a aceitação, por unanimidade, de Moçambique no Conselho de Segurança da ONU?

– Justamente porque o governo de hoje é consequente, portanto, encontrou blocos e fundações construídas, para uma democracia orientada para o não-alinhamento e o diálogo com todas as Nações e uma filosofia de busca constante de amigos. E foi isso que foi feito, uma busca constante de amigos. Isso permitiu-nos conversar com todo o mundo e explicitarmos qual é a posição de Moçambique.

Mesmo este conflito recente entre a Rússia e a Ucrânia, para alguns analistas, pensavam que poderia criar alguma crispação por parte de alguns e esperavam que nós votássemos explicitamente contra um ou a favor do outro. Mas ficou claro que o nosso não-alinhamento foi premiado. De todos os cinco que entraram, Moçambique é o único que conseguiu a unanimidade.

Está a dizer que estes resultados não seriam possíveis, por exemplo, se Moçambique não tivesse assumido a postura que teve no conflito russo e ucrâniano?

– Eu creio que sim, não se escreve a história com “se” … “se”. No entanto, eu acredito que teria criado uma crispação de alguns que conhecem Moçambique como o não alinhado. Este é o princípio que nós temos, de não-alinhamento.

Mas, o que levamos para a ONU?

– Levamos a nossa experiência, ela é modesta, mas é útil. São poucos países como o nosso, que com a idade que nós temos, passaram por conflitos como nossos, guerras e também negociações. Estamos a dizer que, nos últimos 60 anos, desde a fundação da Frelimo até aqui, passamos por guerras e muitas negociações e acordos de paz. São poucos países que passaram por isso, e é essa experiência que levamos até lá.

Tivemos guerras e acordos. Mas há acordos repetitivos, o que indicia fracasso…

– Eu não diria fracasso. Mas os acordos em si não são perfeitos, é um ponto de equilíbrio. Um ponto de equilíbrio que tem que satisfazer ambas partes, ambas partes têm de ganhar, e se não houver win-win então não há acordo, mas não há acordos perfeitos.

Pode haver um desequilíbrio que faz com que uma das partes não esteja feliz, quando é assim temos de sentar e conversar, exactamente isso que fomos fazendo ao longo do tempo, em que quando vimos que uma parte estava em crispação sentamos e conversamos para saber, afinal, meu irmão, o que lhe apoquenta, quais são os problemas, vamos nos entender. É exactamente essa capacidade de diálogo que nós temos, parece pequena porque nós mesmos somos jogadores, não paramos para nos avaliar, mas aqueles que estão fora dizem sim, senhora. Eles estão a jogar um jogo justo.

Entre nós, às vezes, têm aqueles com uma tendência de autoflagelação, o que não é bom. É preciso tentar valorizar aquilo de bom que temos, e reflectir para entender o que nos separa para podermos ultrapassar e continuar a construir uma paz duradoura, um país inclusivo e onde podemos promover um desenvolvimento integrado para todos os Moçambicanos.

“Moçambique é um país não só de que se fala, mas com que se negoceia e tem que se estar”

Na história recente, tivemos a nossa imagem beliscada por causa do escândalo de corrupção das dívidas ocultas, que nos isolou do mundo. É um evento paralelo ou nem com isso deixamos de ser visto como sempre fomos?

– Todos os países têm os seus problemas, este é um problema interno e houve algum problema de comunicação. E o que fez com que o país fosse reconhecido foi a humildade de se abrir e reconhecer o problema, nós queremos resolver o problema e gostaríamos que nos ajudassem a sair do problema e fomos dialogando com todas as partes que tinham reticência.

E começaram a ver que sim, houve acções concretas que foram empreendidas no sentido de normalizar a situação e ganhar a credibilidade, a disciplina fiscal que fomos tendo e uma série de outras actividades macroeconómicas que não estavam claras ao mundo financeiro internacional e Moçambique é um país não só de que se fala, mas com que se negoceia e tem que se estar. Se alguém tivesse uma reticência. Podia ter se abstido ou votado contra. Significa que estamos em boa saúde no concerto das Nações.

Estamos a nos perguntar o que podemos dar, mas grande parte dos moçambicanos querem saber se ganhamos estando lá?

– Ganhámos o que referi há pouco. Nós vamos humildes porque queremos aprender. Temos a plena consciência que os conflitos que amiúde vão surgindo derivam de défice na destreza diplomática, vamos ver como os outros resolvem os conflitos sem guerra, dialogando.

Os pequenos atritos que às vezes têm surgido entre nós. Neste momento temos o terrorismo, e sem rosto, e a expectativa de todos os moçambicanos é que pelo menos descubramos o rosto, porque sabemos que se descobrirmos o rosto poderíamos até conversar, mas eles tem que deixar a postura terrorista, porque se tiverem uma agenda deixam de ser terroristas. Se não tem agenda todo o mundo vai se reunir porque continua unido contra o terrorismo, ninguém quer o terrorismo.

A nossa política de neutralidade pode ter nos feito bem neste momento. Mas não revela uma falta de determinação?

– Não. Nós somos determinados e sabemos o que queremos. É difícil ser amigo de todos, mas essa é a nossa filosofia, beneficiar de todas as partes, não queremos ser amigos de uns e inimigos de outros. Sendo amigo de todos podemos ter o melhor de todas as partes, há boas coisas em cada Nação, por mais pequena que seja, há boas coisas que podemos ter.

Olhando para esse percurso, de que nos serviu a campanha?

– Não se escreve a história com “se”… “se”. Mas podemos dizer que se não tivéssemos feito a campanha os indecisos não teriam votado em nós ou teriam votado contra. É certo que passaríamos com dois terços, mas ficaríamos preocupados com essa outra parte, ninguém gostaria de estar lá sabendo que há um terço que não votou.

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