Recordando José Eduardo dos Santos

OPINIÃO

 Luca Bussotti

Não houve surpresas: José Eduardo dos Santos, conhecido como Zedú, o eterno presidente de Angola, não resistiu à grave doença contra a qual há anos estava a combater. Morreu num hospital privado, na cidade de Barcelona, suportado pelo amor dos seus familiares e a guerra entre estes e o actual governo angolano. Mesmo depois da morte, a família não poupou acusações infamantes contra João Lourenço, acusado de querer acelerar o desaparecimento físico de Zedú, tendo pedido ao pessoal do hospital espanhol para proceder a um exame autóptico para verificar as efectivas causas de morte do seu ente querido..

Neste conflito lacerante tem a síntese de toda a história política do Zedú, cuja parábola tinha começado com a morte de Agostinho Neto na Rússia, em 1979. Uma herança nada simples, a deixada por Agostinho Neto, que tinha merecido uma estatura política internacional, culminada com reconhecimentos relevantes naquela altura, tal como o prémio Lenin pela paz em 1975-76. Apesar de Neto ter tido grande responsabilidade em episódios marcantes e dramáticos da história angolana, como a chacina de 27 de Maio de 1977, quando mandou eliminar um número indefinido de angolanos (entre 20.000 a 50.000, provavelmente) supostamente envolvidos num golpe de estado organizado pelo ministro Nito Alves, a sua fama manteve-se quase que intacta.

Foi neste clima terrível, de guerra civil contra a UNITA de Jonas Savimbi e de caça às bruxas contra os “fraccionistas internos” que o novo presidente, José Eduardo dos Santos, teve de liderar o estado angolano. Uma carreira político-militar significativa, uma licenciatura em engenharia petrolífera conseguida na União Soviética, em 1969, Dos Santos fez as suas primeiras experiências como quadro do MPLA, de que foi um dos co-fundadores. Dedicou-se especialmente à diplomacia e, em 1975, assumiu o papel de ministro das Relações Exteriores no primeiro governo angolano independente. Nos primeiros anos enfrentou com moderação emergências iguais a guerra civil e o conflito com as tropas sul-africanas, a que as cubanas estavam se opondo. As suas habilidades diplomáticas serviram para não deixar o país completamente destruído, encaminhando-o para se tornar uma das referências principais em termos de produção de petróleo no continente africano.

Talvez, a pior parte da sua governação começou depois de ter alcançado a paz com a UNITA, em 1991, com os Acordos de Bicesse. Nas primeiras contestadas eleições livres, em 1992, Dos Santos não conseguiu ganhar contra Savimbi na primeira volta, apesar de prováveis fraudes que a UNITA não aceitou. Dos Santos não conseguiu ou não quis evitar o retorno da guerra, que terminou com a morte de Savimbi em 2002.

Ainda piores foram os últimos anos da sua governação, de 2002 até 2017. Com a paz, e com a unificação do exército da UNITA e do governo, Zedú construiu uma democracia apenas formal, em que intimidação, repressão e fraudes eleitorais fizeram de Angola um dos países considerados como não democráticos, num contexto africano que estava à procura de espaços cada vez maiores de liberdade e competição eleitoral. O poder continuou sendo centralizado que, até hoje, Angola não conheceu nenhuma eleição de tipo local, quer municipal, quer provincial. Ao mesmo tempo, a corrupção tornou-se práxis implementada pelo cada vez mais poderoso presidente angolano e pelos seus acólitos, incluindo entre eles os filhos. A “princesa” Isabel foi a expoente principal da colonização financeira “ao contrário”, tendo o capital angolano penetrado, por intermédio dela, principalmente em Portugal e Brasil, onde chegou a deter participações empresariais em mais de 400 sociedades, inclusive na GALP. Seu património pessoal era de cerca de 2 mil milhões de dólares, e a sua fortuna económica iniciou a desmoronar, em 2020, com o Luanda Leaks.

O pai tinha se dedicado essencialmente à gestão do petróleo doméstico. Human Rights Watch e Fundo Monetário Internacional calcularam que, só entre 1997 e 2002, cerca de 4,2 mil milhões de dólares desapareceram dos cofres do estado através de operações financeiras não transparentes, utilizando o Banco Central de Angola como veículo para levar a cabo estas enormes transações ilícitas. Trata-se de um valor correspondente ao total da despesa social e da ajuda humanitária, nacional e internacional daquele período.

Apesar de uma reflexão mais ponderada se impor com mais calma, estas primeiras considerações logo a seguir a sua morte revelam que José Eduardo dos Santos será provavelmente recordado como alguém que deixou um legado bem preciso: o de uma governação associada à cleptocracia de estado, de familismo e de enormes contrastes entre ricos e pobres na sociedade angolana, segundo um modelo de que Angola dificilmente poderá se livrar em pouco tempo, como as tentativas falhadas de João Lourenço na luta à corrupção tem demonstrado ao longo do seu primeiro mandato.

No curto prazo, a morte e a sua gestão por parte da família Dos Santos e do governo angolano poderá representar outra arma nas mãos das oposições que, em Agosto deste ano, irão disputar eleições provavelmente renhidas com o MPLA e João Lourenço. O facto de já ter havido manifestações contra o actual executivo na cidade de Luanda, evocando a figura de José Eduardo dos Santos, revela como a morte do antigo líder poderá influenciar negativamente na campanha eleitoral do MPLA.

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