Numa entrevista concedida em exclusivo ao Jornal Evidências, a porta-voz do Departamento do Estado dos Estados Unidos da América (EUA), Kristina Rosales, desafia o continente africano a estabelecer uma única força de combate ao extremismo violento, como o que se regista em Cabo Delgado, para evitar perpetuar o problema com a actuação pouco transparente de alguns grupos de mercenários que aproveitando-se das fragilidades e corrupção de algumas lideranças lucram e acabam por expandir ainda mais problema em vez de acabá-lo. Nas entrelinhas duma entrevista em que a fonte estava só autorizada a abordar questões de cooperação entre os EUA e a África Subsaariana, Rosales mostrou-se preocupada com a ascendência de um movimento de alinhamento autocrático em alguns países como Moçambique, contudo, mostrou-se confiante nos jovens que se tem mostrado contra as tendências antidemocráticas. Na entrevista que se segue, conheça as linhas da nova estratégia dos Estados Unidos para a África Subsaariana, que se baseia em novos paradigmas em que o continente não é mais visto como receptor, mas como parte da acção.
Recentemente, o Departamento de Estado norte-americano apresentou a sua nova estratégia para África Subsaariana. Essencialmente, em que se centra esta estratégia?
– Como o secretário Blinken falou, na semana passada, durante a sua visita na África Subsaariana, onde escalou África do sul, República Democrática do Congo e Ruanda, o continente africano é um parceiro vital e é base da estratégia nova do governo americano em que a África vira um parceiro importante para os EUA. A nossa nova estratégia se foca no que vamos fazer com a África e não para a África, não necessariamente para as nações e povos africanos. Durante o discurso, mencionou quatro áreas estratégicas que posso mencionar brevemente, que são de importância estratégica. Primeiro, um novo conceito de Sociedade Aberta, uma sociedade que seja conectada, uma sociedade que tenha acesso a digitalização, onde a juventude africana tenha acesso também às oportunidades.
A segunda área tem a ver com o novo Conceito Democrático em África e como isto está ligado ao conceito de segurança, no sentido de como podemos juntamente combater esses desafios globais, como, por exemplo, a corrupção que muitas vezes está ligada a essa falta de democracia e outros problemas ligados à governação no continente. A terceira área é a Recuperação do Continente depois da Covid-19, obviamente, sabemos que teve muita perda com a Covid-19, houve crescimento da pobreza e precisamos de trabalhar juntamente para ter as melhores oportunidades económicas e, por último, o tema da Conservação e Adaptação às Mudanças Climáticas, que obviamente o secretário falou em detalhe ao referir que o continente africano é o que mais impacto tem sentido desta mudança climática.
Por aquilo que ouvimos no discurso do secretário Blinken, essa estratégia está mais centrada na juventude. Por que exactamente a juventude?
– A juventude é o maior grupo do continente africano. Sabemos que é um grupo que de certa forma está numa certa desvantagem neste momento, no sentido de avanço económico e representação. Por exemplo, o secretário falou muitas vezes no contexto da democracia porque sabemos que tem vários países no continente africano, onde a participação dos jovens é bastante limitada, mas isso também acontece em outras partes do planeta. No caso do continente africano, sabemos que, especialmente, a juventude faz parte dos maiores apreciadores dos conceitos de uma governação que seja representativa, que não seja uma ditadura, que não seja o conceito de uma pessoa que fica no poder por décadas, uma governação para que as pessoas consigam ter emprego, uma governação que as pessoas consigam ir adiante com as oportunidades de uma forma justa.
Infelizmente, hoje, por motivos de corrupção e muitas vezes exploração por alguma vertente não democrática, não se tem dado esta oportunidade para a juventude africana, que de certa forma é quem representa, hoje em dia, o continente.
E de que forma os EUA pensam em estimular essa juventude para participar de forma activa e assumir esses projectos de liderança que são necessários, tendo em conta que o grosso dos nossos regimes é repreensivo e o espaço político é muito afinado?
– Acho que de certa forma tem várias respostas, uma coisa que o secretário mencionou no discurso tem uma ligação com dois temas que mencionei, o tema de uma sociedade aberta em que, inclusive, o secretário citou o caso de Moçambique, que adoptou uma tecnologia da Starlink, que tem ajudado o país a passar por uma transformação, mas isto levou tempo, mas permite que as pessoas tenham acesso a digitalização para poderem se conectar com outras pessoas.
Esse é um passo significativo para mudar as pessoas no sentido de conseguir um emprego. Há muitas oportunidades que surgem muitas vezes quando as pessoas estão conectadas, pois conseguem trabalhar online, o que de certa forma faz parte de uma nova economia que pode ajudar a levantar toda uma camada de jovens. Em certos países, inclusive em Moçambique, tal como o secretário do Estado mencionou, sabemos que é uma parceria muito forte que temos em várias partes de Moçambique, que trabalhamos de forma conjunta. Por exemplo, temos o sistema educativo entre os EUA e o continente africano, que é a bolsa Mandela – Washington, que sabemos que as pessoas fazem de tudo para entrar num programa educativo, têm pessoas que passam pelas faculdades e escolas técnicas e graças a esta parceria que o EUA têm com a maioria dos países do continente africano, muitos jovens têm a oportunidade de entrar nesta bolsa e estudar e se formar. E essas pessoas fazem parte de um grupo que foi formado para liderar o próprio país, para que não seja sempre a mesma camada de pessoas.
“Nenhum país no continente africano consegue avançar com alinhamento autocrático”
Como é que os EUA pensam em apoiar as democracias africanas? Temos muitos líderes que têm enveredado por caminhos pouco democráticos, dando exemplo de Moçambique, onde já há algumas insinuações de um provável terceiro mandato do nosso Presidente da República. Como os EUA olham para estes tipos de tendências pouco democráticas e como podem apoiar esses países a ultrapassar esse problema?
– Obviamente, estamos a registar certas ameaças no século XXI, no contexto da democracia, e essas ameaças são várias. Em algumas vezes temos uma governação que vira autocrática, tem também o problema da desinformação, a informação armada, a vigilância digital. Tudo isso são problemas que não estão só a afectar o continente africano, mas no nosso caso tem afectado os EUA também. Uma das coisas que temos trabalhado com vários países, inclusive com Moçambique, é uma nova abordagem no sentido da governação global, que vai ser um investimento de aproximadamente uma década que vai promover uma sociedade mais pacífica, mais inclusiva e mais resiliente nos países que sabemos que temos conflitos de urgência.
No caso de Moçambique, sabemos que temos esta situação no norte do país, com os ataques dos grupos extremistas que de certa forma estão impactando o bem-estar da sociedade moçambicana e também temos outros países em África. O secretário também falou da situação do Benin e Costa do Marfim.
Outro problema que estamos a trabalhar conjuntamente neste tema de democracia e segurança é especificamente a exclusividade de como podemos tratar estes temas com grupos de movimentos extremistas que participam de certa forma de interferência estrangeira no continente africano. Lembra-se, por exemplo, do grupo Wagner, que opera no Mali, na República Centro Africana. São grupos que contribuem para o aumento da corrupção e também para a aniquilação da democracia. De facto, vai ser um tema que vai ser tratado com os líderes africanos na cimeira dos líderes africanos em Dezembro deste ano, sabendo que é um tema que infelizmente está colaborando para acabar com a democracia do continente, algo que constitui preocupação para nós e por isso estamos a traçar essa nova estratégia para a África subsaariana.
E em relação aos movimentos que assistimos de alguns líderes que querem o terceiro mandato. Que tipo de abordagem tem os EUA para com esses dirigentes.
– Sabemos que nenhum país no continente africano consegue avançar com esse tipo de alinhamento autocrático ao não ter, por exemplo, eleições que sejam livres e justas, onde muitas pessoas tenham transições pacíficas de poder. Sabemos que é um tema que além de delicado é um tema que precisa de ser trabalhado com mais atenção no continente africano porque sabemos que temos que ter transições democráticas dentro do continente, não só em termos de segurança, mas para prosperidade regional e para a própria sociedade africana.
Temos exemplos positivos, como é o caso da CEDEAO, em que os 15 países membros vão aprovar uma proibição para os presidentes que busquem o terceiro mandato. Os presidentes da Gâmbia e da Nigéria estão no segundo mandato e foram os proponentes desta nova regra, e é uma coisa que nós como EUA apoiamos e gostamos que haja esse tipo de iniciativa que vem dos próprios líderes africanos. Sem essa alternância pacífica não há como os próprios países do continente avançarem. Esperamos que isso seja levado a frente.
A partir do próximo ano entramos no novo ciclo eleitoral e geralmente nós entramos em conflitos pós-eleitorais. Que tipo de estratégias têm, como parceiros do continente, para evitar que este tipo de ciclos de conflitos pós-eleitorais por suspeitas de fraudes continuem?
– Como país, nós respeitamos e apoiamos para que o processo eleitoral seja justo, livre e certamente para que a população possa ir às urnas para colocar voto e se expressar livremente para que não seja um processo autocrático. Isto, para nós, é um dever e nesta nova parceria que temos com o continente africano vamos apoiar para que o processo eleitoral seja democrático. Estamos atentos ao que vai acontecer este mês em Angola e vamos fazer a mesma coisa quando chegar a vez de Moçambique, para que o processo seja justo e representativo, o que o povo moçambicano quer, que não seja um processo autocrático que vai tirar esse poder do povo.
EUA desafiam África a adoptar uma força de segurança conjunta
Uma outra ameaça para a democracia é o jihadismo que cada vez tem conquistado mais espaço em África. No caso de Moçambique, apesar dos avanços, a situação está ainda por clarificar. Como os EUA pensam em ajudar países como Mocambique a ultrapassar a questão do terrorismo em África, tendo a sua larga experiência?
– O terrorismo em Moçambique é um tema que já estamos a tratar a bastante tempo. Nos últimos anos é um tema que tem sido abordado de forma regional com vários parceiros e para nós continua a ser uma preocupação real, porque além de afectar inúmeras comunidades em Moçambique. Sabemos que além de Moçambique tem o caso da RCA e Mali onde se tem utilizado grupos de mercenários como a Wagner para lidar com esse tipo de problemas.
Tem se referido sempre a grupos de mercenários. Porquê?
– Nós achamos que não é a forma de lidar com esses problemas, temos outras formas que são eficazes e mais responsáveis que nós sabemos e recomendamos. O continente africano em si precisa trabalhar para construir forças de segurança africana que sejam mais responsáveis e que respeitem os direitos das pessoas para que ajudem a combater o jihadismo, que muitas vezes leva as pessoas a esses grupos extremistas. Tem de haver uma diplomacia sustentada para acabar com essa violência e abrir caminhos para a paz, porque sabemos que temos os recursos, as formas de combater, mas muitas vezes por motivos de corrupção, por usar certos grupos que não deveria usar, acabamos expandindo esse problema ainda mais em vez de terminar com ele. De certa forma, essa temática do terrorismo vai ser de suma importância para nossa nova estratégia e vamos continuar a combater esta situação em vários países do continente africano e com a certeza de que no final das contas vamos acabar com a existência de grupos terroristas no continente.
“Mercenários oferecem-se para solucionar um problema em troca de recursos”
Falou de uma corrupção que pode estar a dificultar o combate ao terrorismo em África. A que se refere exactamente?
– Muitas vezes o que temos estado a assistir é uma interligação nos países que estão passando por momentos de uma situação de democracia fraca. Muitas vezes a corrupção está interligada com certos líderes, com certas entidades ou grupo estrangeiro como a Wagner que se oferece para solucionar um problema em troca de recursos, mas acabam criando um problema ainda maior.
Como assim? Assistimos no continente algumas intervenções que parecem bem sucedidas…
– Olha, sabemos que esses grupos de mercenários são apoiados por outros países que não tem o conceito de bem-estar do povo africano, acabam se interligando e fazendo com que o problema cresça ainda mais, não só de corrupção, mas a instabilidade que abre dessa forma portas para que esses grupos entrem mas também cresçam nesse país.
Como que olha para a estratégia de Moçambique desde o inicio do terrorismo. Tivemos dois grupos de mercenários a actuarem em Cabo Delgado. Como é que os EUA olhavam para aquela situação e os caminhos que actualmente estão a ser trilhados?
– É uma pergunta que tinha que entrar em contacto com a embaixada, porque trato de assuntos regionais, mas nós temos uma parceria muito forte com o governo moçambicano, temos trabalhado de forma extensa para tratar esse tema, sabendo que esse problema que está acontecer a muito tempo no norte de Moçambique está a afectar várias comunidades e limitando a circulação nessas zonas. Continuamos essa parceria e já tivemos várias lideranças do governo americano que passaram por Moçambique nas últimas semanas. Estamos a trabalhar com o povo moçambicano para acabar com esse problema de células do terrorismo que estão influenciando essa região e estão dando mais problemas não só para Moçambique, mas também em outros países da vizinhança.
A covid-19 dilacerou a economia que já era frágil, como é que a África deve explorar a parceria e a experiência dos EUA para sair desta crise?
– Olha, vou ter de falar rapidamente porque já ultrapassamos mais de 30 minutos e tenho outras entrevistas marcadas. O secretário falou como conjuntamente trabalhamos com o continente inteiro, foram 170 milhões de doses de vacina que foram doados para vários países em África. Temos vários projectos que estamos a colaborar neste momento. Uma das parcerias que temos em carteira é apoiar os países a serem auto-suficientes na produção de vacinas. Em Senegal, falamos de uma instalação que consiga produzir as vacinas para que não sejam de produção continental ou nacional, mas que ajudem para que a próxima pandemia que teremos, o continente africano esteja mais preparado do que aquilo que se encontrou quando começou a Covid-19.
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