Luca Bussotti
A Constituição de um país é o documento mais sagrado que procura unificar as diferentes populações, grupos políticos e religiosos, indivíduos dentro de um conjunto de normas compartilhadas pela larga maioria dos cidadãos. As primeiras Constituições modernas foram aprovadas nos Estados Unidos e na França, mas elas representavam, naquelas épocas (séculos XVIII-XIX) excepções dentro de um panorama internacional feito de soberanos legibus solutus (ou seja, soltos das leis, portanto que estavam acima das leis) e de súbditos com direitos muito limitados. O processo constituinte europeu deu-se muito tempo depois, em larga medida a partir das cinzas da segunda guerra mundial. Uma boa parte dos países europeus que, como Itália e Alemanha, tinham adoptado regimes explicitamente totalitários aderiram, com o fim do conflito, ao modelo democrático, aprovando novas Constituições. Tratou-se de um exercício profundamente democrático, em que todos os representantes dos partidos participaram da Assembleia Constituinte, segundo os votos que tinham conseguido em eleições livres, e redigindo juntos, comunistas e liberais, socialistas e católicos, republicanos e radicais, a carta magna dos respectivos povos. Na Espanha e em Portugal este processo deu-se cerca de trinta anos depois do fim da guerra, com a queda dos regimes totalitários que tinham caracterizado a história destes dois países ao longo de boa parte do século passado.
Em todos os casos o que emergiu, além de maiorias governamentais ou até de artigos constitucionais mais ou menos próximos a esta ou aquela tendência político-ideológica foi um espírito novo: o espírito constituinte, que até hoje é evocado por parte de associações, organizações da sociedade civil, intelectuais, quando alguém, por interesses partidários ou até pessoais, pretende mudar o sentido da Constituição.
Em Moçambique tem-se falado muito, nos últimos tempos, de “unidade nacional”, “tribalismo”, “etnicidade”: conceitos, todos eles, que tinham sido abafados nos últimos vinte anos, depois de vários intelectuais terem-se debruçado sobre a questão, nunca resolvida e sempre em devir, do sentido da unidade nacional. Carlos Seria, Elísio Macamo, Severino Ngeonha e Brazão Mazula são apenas alguns destes intelectuais que, aproximadamente desde 1992 até o fim do mandato do Presidente Chissano, ofereceram suas reflexões sobre como edificar uma consciência nacional, sem frustrar o sentido de pertença local dos vários povos que compõem o mosaico moçambicano. Depois este discurso ficou cada vez mais limitado, assumindo a configuração de um verdadeiro conflito, em 2013-2014, entre os eternos rivais da Renamo e da Frelimo/Governo. Por não falar do recente conflito em Cabo Delgado, com características acentuadamente étnico-religiosas, muito mais do que propriamente políticas.
Quando o deputado da Renamo, Venâncio Mondlane, aborda a questão da unidade nacional, procurando as clivagens históricas de uma nação ainda em formação, quando o general Nihia também faz a mesma coisa, embora com uma linguagem e uma perspectiva em muitos sentidos inaceitáveis, mas denunciando que existe um problema neste sentido, acompanhando a fala anterior do General Chipande e os pronunciamentos de Pio Matos, tudo isto significa que alguma coisa está em falta. E o que falta – entre os outros problemas enormes que Moçambique apresenta neste momento – é o espírito da Constituição.
Se formos a ver, a Constituição até hoje em vigor não difere muito da de 1990. Certo é que foram aprovadas outras Constituições e foram feitas alterações pontuais às mesmas, a partir daquela de 2004 e acabando com a de 2018. Entretanto, os fundamentos do actual pacto entre os moçambicanos foi escrito em 1990, por um parlamento ainda monopartidário. Talvez possa ser por causa disso que em muitos, jovens acima de tudo, não se reconhecem nos princípios constitucionais do Estado moçambicano. Não existem receitas já preparadas para ultrapassarmos estes constrangimentos. Entretanto, uma delas – se as forças políticas assim o acharem – seria a redação de uma nova Constituição, envolvendo todas as forças políticas, da sociedade civil, da academia, das confissões religiosas (segundo regras ainda a serem estabelecidas), mediante uma Assembleia Constituinte.
Para que isso aconteça é necessário que todos os expoentes políticos se relacionem à actual Constituição como algo de leigamente sagrado. Todas as Constituições podem ser mudadas, mas o aconselhável, principalmente numa altura dessas, em que resulta evidente um défice do espírito constitucional a nível nacional, é de fazer isso de forma inclusiva, e não mediante votações num parlamento que está para terminar o seu mandato e que representa um segmento muito limitado da população moçambicana (é suficiente ver o nível de abstenção das eleições de 2019 para demonstrar isso). Só depois das eleições de 2024, portanto, seria conveniente estabelecer as regras para a formação de uma Assembleia Constituinte, que trabalhe em paralelo à Assembleia da República – que irá continuar com o seu trabalho ordeiro – e que, até o fim do próximo mandato, volte a estabelecer as regras de convivência entre os moçambicanos, desta vez incluindo a maior fatia possível das suas organizações de representação colectiva da sociedade. Um desafio, este, que não diz apenas respeito às tentações do terceiro mandato mediante alteração constitucional por parte de algumas alas da Frelimo, mas que implica também uma reflexão séria do lado das oposições, se elas tiverem ideias a este propósito.