Democracias a metade

OPINIÃO

Luca Bussotti

Existe uma diferença fundamental entre uma concepção liberal e uma progressista e participativa da democracia: a de tipo liberal, defendida por autores como Locke ou Tocqueville, enfatiza a liberdade do cidadão-eleitor e a importância de um sistema de contrapesos – principalmente institucionais – para limitar o poder da maioria eleita pelo povo. A de inspiração progressista – por exemplo, representada pelo jurista Kelsen, em seus escritos de ciência política – defende que não seja suficiente deixar plena liberdade ao cidadão-eleitor, mas sim que seja fundamental que haja uma correspondência entre o nível institucional (Estado-Parlamento) e o nível da sociedade civil. Esta última deve encontrar as melhores formas, dentro do ordenamento jurídico, para “contar” além da simples aprovação desta ou daquela lei. Em muitos países latino-americanos as suas Constituições foram moldadas consoante a segunda perspectiva da democracia, com medidas até coercivas, tais como a obrigatoriedade – não apenas formal, mas substancial e com consequências graves caso não seja respeitada – do voto para quem tiver este direito, como, por exemplo, no Brasil. Outras formas de participação dizem respeito a pelo menos três elementos centrais: em primeiro lugar, um sistema eleitoral capaz de atrair os eleitores às urnas; em segundo lugar, a ativação de mecanismos de democracia directa em momentos particulares da vida do país: um desses instrumentos é o referendo. Finalmente, procedimentos de envolvimento de associações, organizações da sociedade civil e dos demais grupos colectivamente constituídos em ocasião de tomadas de decisões importantes, quer a nível local, quer a nível central. A aprovação do orçamento do Estado ou de um município seria um desses momentos. Um método consultivo, este, já presente em muitos países ocidentais e latino-americanos, principalmente a nível das províncias e dos municípios.  

Na Europa quase todos os países enveredaram para o modelo liberal de democracia. Isto tem significado o direito (mas não o dever) de voto, um sistema político com diferenças não relevantes entre centro-esquerda e centro-direita, pelo menos depois da queda do Muro de Berlim e o fim da ideologia comunista, sistemas eleitorais muitas vezes incapazes de atrair os eleitores, finalmente o desincentivo à participação do cidadão à vida pública. Resultado: os níveis de abstencionismo dispararam. Só para termos uma ideia, entre 1968 a 1984 o único país europeu com níveis elevados de abstencionismo era a Suíça (cerca de 48%), devido à sua particular configuração política. Nos outros países da Europa Ocidental o abstencionismo não passava de 25%, com pontas em países como Suécia, Áustria, Itália e Bélgica abaixo de 10%.

O quadro mudou radicalmente a partir da década de 1990. Com o fim da contraposição ideológica, o abstencionismo iniciou a alastrar-se a todos os países ocidentais, com poucas excepções (a Suécia, acima de tudo, e algumas democracias novas dos países da Europa do Leste). O erro da maioria dos observadores políticos foi de considerar este fenómeno como natural em democracias “maduras”, seguindo o exemplo dos Estados Unidos, onde dificilmente se chega a uma percentagem de votantes acima de 50%. Na verdade, o crescimento do abstencionismo significou o progressivo distanciamento da população em relação à coisa pública. Foi por isso que os movimentos de protesto cresceram exponencialmente em toda Europa, como demonstram episódios recentes, tais como o Gilets Jaunes na França, os no-vax em quase todos os países europeus e por aí fora.

O que se construiu foram democracias “a metade”: literalmente, pelo simples facto de que os parlamentos eleitos passaram a representar cerca de 50% da população (ou seja, o número de votantes que efetivamente se fizeram às urnas); numa forma mais profunda porque tais democracias perderam a capacidade de envolver os seus cidadãos nos processos decisórios fundamentais, deixando de utilizar os poucos instrumentos de democracia directa disponíveis em democracias representativas.

A realidade africana – inclusive a moçambicana – enveredou para um caminho parecido: com a viragem da década de 1990 muitos países do continente experienciaram, pela primeira vez, processos eleitorais livres e multipartidários, mas nem por isso transparentes e justos. É suficiente ver o que tem acontecido em países como Angola e Moçambique, com processos eleitorais numa primeira fase muito participados, depois cada vez menos atrativos e com níveis maiores de abstencionismo. Podemos nos refugiar na ideia de que Moçambique também, à maneira dos Estados Unidos, está a se tornar uma democracia “madura”, onde o abstencionismo representa um fator estrutural dos processos eleitorais. Na verdade, não é mesmo assim: acima de tudo, Moçambique quis implementar uma democracia tendencialmente participativa, uma vez que o voto é sim um direito, mas continua um dever. Em segundo lugar, apesar da activação de alguns instrumentos de participação directa do cidadão a certas decisões, por exemplo as consultas comunitárias, tais instrumentos se tornaram meros mecanismos formais, que não conseguem envolver os cidadãos na vida pública do país. Por não falar da falta de activação de outros instrumentos, previstos pela Constituição, como o referendo, de que nunca se aprovou uma lei específica para regulamentar o uso. Finalmente, o sistema eleitoral é muito pouco atrativo: o eleitor, geralmente, pretende escolher o deputado que, localmente ou a nível nacional o representará, quer manter um contacto constante com ele (ou ela), fiscalizar a sua actividade, procurá-lo em caso de necessidade. O actual sistema eleitoral, com listas bloqueadas e determinadas pelos partidos políticos, sem que o eleitor possa indicar a sua preferência para este ou aquele candidato só empurra o cidadão para o abstencionismo. Num país onde já se sabe de antemão quem é que irá ganhar – pelo menos a nível nacional -, seria interessante se os partidos abrissem a mão para um sistema eleitoral mais inclusivo e competitivo, talvez favorecendo a ida às urnas dos eleitores, assim como para a activação de mecanismos básicos de democracia directa, como o referendo, previstos pela Constituição, mas que até hoje ficaram sonegados, mesmo do lado das oposições. 

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