O grito silencioso de Graça Machel contra os novos donos do partido

DESTAQUE POLÍTICA
  • Dos bastidores do XII Congresso à reconfiguração da nova Frelimo
  • Graça Machel decidiu não se “misturar” com a nova Frelimo feita a medida do Chefe
  • Mesmo com candidatos únicos, o escrutínio foi manipulado a todos os níveis
  • Escrutinadores e “observadores” foram indicados pelos mesmos “chefes”

Oficialmente, Filipe Nyusi saiu do XII Congresso mais “legitimado” como presidente da Frelimo e com maior poder de influência. Esta era a meta por detrás de eleições internas com graves indicações de fraude, apesar das aclamadas candidaturas únicas desde a célula, passando pelas conferências do círculo, localidade, distrito, província até à magna reunião que encerra um ciclo do partido e abriu espaço para ascensão de novos players da Frelimo, que, segundo algumas vozes, tem o Celso Correia no Centro. Este processo foi marcado pela imposição dos candidatos dos chefes, com acusações de manipulação de votos, criação de ambiente de intimidação e tentativa de banalização das vozes discordantes como foram os casos de Graça Machel e Armando Guebuza. O tradicional número de delegados foi reduzido pela metade e aumentou o número de “seguranças”, que no lugar de criar um ambiente de maior tranquilidade acabou criando tensão.

Nelson Mucandze

A aclamada transição geracional continua a ser um aborto a cesariana. Depois de fracassada tentativa de reduzir a cota de continuidade nos órgãos sociais, para igualdade, o consulado de Nyusi na Frelimo conseguiu pelo menos controlar as novas entradas e promover uma “varredura” de certos presidenciáveis que estavam acomodados em posições-chave.

Alguns despertaram ao perceber que o processo não era nada transparente e não ousaram candidatar-se, tais são os casos de José Pacheco, Luísa Diogo, entre outros nomes sonantes. Alguns, como Sérgio Pantie e Basílio Monteiro, foram eliminados na corrida a membros da Comissão Política, um cenário que agora põe em causa a legitimidade do primeiro, como chefe da banca da Frelimo.

Avisada e sempre fiel aos seus princípios,  Graça Machel, que no passado chegou a abandonar uma sessão do Comité Central, negou ser cúmplice dos “novos donos da situação” na Frelimo e retirou a sua candidatura ao Comité Central, uma espécie de um grito silencioso que se supõe dizer: “se não posso falar, porquê me juntar” numa reunião onde era proibido falar dos pontos não arrolados pelo “Chefe”, evidenciando uma ruptura entre os players do XII Congresso e os antigos dirigentes e fundadores da Frelimo.

Quem também lançou um grito silencioso de protesto foi Armando Guebuza, presidente honorário do partido, que, inclusive, gazetou alguns momentos do Congresso, sobretudo o enceramento e o momento de votação de Filipe Nyusi.

Guebuza entrou e saiu mudo do Congresso, mas quando se leu uma poesia exaltando parte dos seus emblemáticos e inspiradores discursos, houve uma grande ovação dos congressistas e este esboçou um sorriso, algo sarcástico, o que poderá ter irritado os seus opositores internos.

Uma máquina de fraude e intimidação

Mas o jogo foi mesmo definido bem antes do arranque do XII Congresso. O processo de eleição nas conferências, desde a célula, passando pelo distrito e província, até ao congresso, não foi nada transparente. Enquanto, no caso dos primeiros secretários a todos os níveis houve acertos de candidaturas únicas, no sufrágio de listas de delegados e membros dos Comités apostou-se mesmo em esquemas que configuram fraude e na intimidação.

Por exemplo, aquando da eleição na província de Maputo, Domingos Tivane, antigo director-geral das alfândegas e influente empresário da praça, foi coagido a renunciar, mas recusou e o nome dele foi forçosamente retirado sob argumento de que andou a corromper membros. Embora há quem diga que esta foi a prática padrão.

Depois do voto nas urnas, o candidato era obrigado a abandonar a sala e a contagem dos votos era feita de forma isolada por escrutinadores escolhidos pelos chefes, sem envolver todo o secretariado. Além dos escrutinadores, os poucos observadores foram também escolhidos pelos mesmos “chefes”.

Noutros casos, isto a todos níveis, as eleições internas decorriam sem observadores e nos casos em que vencia um candidato que não fosse do agrado dos “chefes” ou que tivesse votos que colocassem em causa a legitimidade estes candidatos, os escrutinadores mentiam-se num esquema de invalidação do boletim.

“Eles pegam no boletim, aumentam mais um x no candidato que deve ser excluído ou colocado na cauda, como menos votado, e aquele voto se torna nulo. É uma prática padrão, nos casos em que houve observadores, eles foram bem escolhidos”, denunciou um dos quadros, acrescentado que houve casos em que “pessoas que se supõe que sejam seguranças” estiveram em frente do processo.

Segundo apurou o Evidências de pessoas próximas ao processo, desde o início, estava claro quem deve vencer. Foi no seguimento dessa instrução que todos os secretários distritais e os primeiros secretários provinciais renovaram. A mesma ordem do comando instruía a entrada no Comité Central de todos os secretários de Estado e dos governadores.

Dois dias antes do Congresso, o Presidente do partido trabalhou directamente nas listas nos preparativos que decorreram na sede da Frelimo. Algumas provinciais receberam a lista dos delegados a uma da madrugada da sexta-feira, até a lista dos candidatos a membros do Comité Central, já a nível central teve de ser alterada.

Os chefes não só definiram quem devia entrar, sair, liderar na lista ou ficar na cauda, como também escolheram os escrutinadores e observadores, o que criou campo fértil para a fraude. Em Maputo, Inhambane e Zambézia, alguns dos candidatos ao Comité Central só conseguiram entrar depois de pedirem recontagem e descobrirem a existência de dezenas ou mesmo centenas de votos que haviam sido fraudulentamente deduzidos da sua “conta”.

Redução de delegados para metade

Tradicionalmente, os congressos da Frelimo contam com uma média de mais de dois mil delegados. No XI Congresso foram 2200 delegados, mas no XII o número reduziu para 1500, e destes apenas 1136 participaram da sessão que reelegeu Filipe Nyusi com uma unanimidade histórica que, porém, ganhou uma descrição irónica de Joaquim Chissano, como que a denunciar algo que não estava bem nos números.

“Gostaria que (minha indicação para empossar o presidente da Frelimo) fosse por outros méritos, mas eu não tenho tantos, porque eu nunca cheguei a 100 %. Disseram-me que foram mil e trezentas e tal pessoas que votaram aqui, mas isso multiplica-se por tantos militantes que estão nas bases. São eles que fizeram os 100 %”, disse o antigo governante, nacional que depois pediu ao vencedor “a 100%” para “reconciliar” o partido.

Ao todo, estiveram 1500 delegados e perto de 500 convidados. O escritório para se indicar quem devia ser convidado também foi renhido, o Presidente do Partido, Filipe Nyusi, trabalhou longamente ao lado de Roque Silva, para garantir neste processo. As brigadas só tinham direito de um convidado.

Tudo estava centralizado de tal sorte que até as 3h da madrugada da quinta para a sexta-feira os “chefes” (Nyusi, Roque  Silva e “CIA”) estavam na sede nacional do partido a trabalhar directamente na preparação do XII Congresso.

Nem com esse envolvimento ao alto nível o secretariado conseguiu que tudo estivesse perfeitamente organizado. Há províncias, como Gaza que receberam as últimas listas de delegados há 1h de madrugada e no Congresso a lista dos candidatos teve de ser reformulada.

A ascensão do Tchexo, o estratega

Celso Correia, o estratega de “um olho no meio de cegos”, é um banqueiro que chega no Governo com soluções financeiras mágicas, mas ainda lhe faltava poder. E é seguro afirmar que Celso Correia tinha “inteligência”, dinheiro e só no XII Congresso conseguiu ter poder para estar onde “finalmente” queria estar.

Celso Correia foi o director de campanha eleitoral que reconduziu Nyusi em 2019. Além daquela vitória conseguiu trazer as soluções para desafios financeiros não só no seu pelouro, mas nalguns ministérios que nada faziam por limitações de fundos, uma “liderança” que o coloca em boa projeção dentro do Governo.

O Sustenta, um projecto que manda um “exército” de jovens extensionistas, nalguns casos confundidos como “mobilizadores”, foi hasteado como bandeira do governo nas vésperas do XII Congresso da Frelimo e levou o também Presidente da República a iniciar uma maratona de inaugurações.

As realizações do Celso, que continua com sérias dificuldades de inserção a nível de alguns primeiros secretários do partido, permitiram que chegasse a Comissão Política, com maior legitimidade ao ter mais votos no topo da lista e tornar-se o mais novo membro da Comissão Política.

É o percurso de um banqueiro que ascende aos negócios pela mão de Armando Guebuza, um mentor de quem hoje tem dificuldade de se aproximar após ter criado percepção de ser um “estratega” perfeito em criar dificuldades para vender soluções, e agora é conotado com ambições presidenciais e conseguiu finalmente chegar à Comissão Política da Frelimo.

Na eleição da “renovação homens”, Celso Correia foi o candidato mais votado, tendo ficado a frente de Francisco Mucanheia, Fernando Faustino e Damião José. Pela mesma lista, não conseguiu entrar Raimundo Diomba.

Na lista de continuidade – homens, seis membros conseguiram manter seus assentos. Trata-se de Alberto Chipande, Manuel Tomé, Éneas Comiche, Aires Ali, Filipe Paunde e Tomás Salomão. Enquanto que Agostinho de Rosário (antigo primeiro ministro), Eduardo Mulembwe, Sérgio Pantie e Raimundo Machinuapa ficaram de fora. Esta foi a única lista em que a concorrência foi renhida.

Na mesma lista de “continuidade – homens” não conseguiu manter seu assento naquele órgão, Basílio Monteiro, apontado como presidenciável. Das novas entradas, apenas Tomás Salomão e Aires Ali, é que têm pretensões a ser candidatos a PR nas próximas eleições internas para candidatos à presidência.

Na lista “continuidade – mulheres”, mantiveram seus assentos Margarida Talapa, Verônica Macamo, Alcinda Abreu e Nhelete Mondlane, e não conseguiram continuar, como membros da CP, Ana Rita Sithole e ConceitaSortane.

Na lista de “renovação-mulheres” entraram, sem muito esforço, Amélia Muendane (Presidente da Autoridade Tributária) e Esperança Bias. E pela lista do “Comité de verificação”, foi eleita candidata única Ana Comoana.

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