Nyusi usurpa poderes da Assembleia da República

DESTAQUE POLÍTICA
  • Nyusi recoloca “minas retardadas”
  • Amnistia aos insurgentes que andaram detidos num quartel não obedeceu legislação 
  • Compete a AR conceder amnistia e PR só dá indulto a quem cumpre pena
  • Indultados nunca passaram por uma reabilitação e psicólogo alerta para graves riscos

O Presidente da República, Filipe Nyusi, concedeu, semana passada (19), em Nampula, perdão a 24 cidadãos que alegadamente integravam o grupo terrorista, que desde 2017 ataca a província nortenha de Cabo Delgado. O processo não observou quaisquer procedimentos legais que caracterizam a indução dos condenados, uma vez que além de não ter se provado os crimes cometidos, tratando-se de processos não julgados, os perdoados não tiveram qualquer assistência de reabilitação para reintegração social. É a materialização de um “nobre gesto”, porém cheio de incongruências. Para indultar, é preciso que sejam pessoas que cumpram penas e os nomes dos beneficiários constem do Boletim da República (BR), “e não encontrar pessoas na rua e depois dizer que foram perdoadas”, argumentou um jurista. A única opção, no caso, seria a amnistia que se concede a qualquer cidadão sem que necessariamente seja julgado, mas essa é competência exclusiva da Assembleia da República. 

Nelson Mucandze

O Presidente da República, Filipe Nyusi, pode ter confundido a indução de penas com a amnistia, ao conceder perdão (amnistia) aos supostos “terroristas” que foram apresentados semana passada em Nampula.

Coberta de boa intenção de atrair os integrantes de grupos terroristas para que abandonem as armas, a vontade presidencial veio culminar com um rasgar da Constituição da República, com Filipe Nyusi a chamar para si uma competência do poder legislativo.

A atribuição de indulto é uma prorrogativa constitucional e exclusiva do Presidente da República, como se pode ler na alínea I do Artigo 159 da Constituição da República. No entanto, trata-se de um benefício concedido aos condenados, ou seja, aos que cometeram um crime que ficou provado em tribunal, podendo, por iniciativa presidencial, gozar do perdão da pena, efectivado mediante decreto que tem como consequência a extinção, diminuição ou substituição da pena.

A última medida do Presidente da República não tem aqui qualquer enquadramento, ao beneficiar supostos terroristas que nem sequer foram julgados. Pesa ainda a inexistência do Boletim da República para formalizar a acção do Presidente.

Por outro lado, existe um outro poder que perdoa sem olhar para formalismos jurídicos, é amnistia, porém compete exclusivamente à Assembleia da República. A amnistia é acto do poder legislativo que perdoa um facto punível, suspende as perseguições e anula as condenações, mas também tem os seus procedimentos legais que devem ser respeitados.

O Presidente da República pode ter caído na “ratoeira” do populismo e, como tal, a sua acção não encontra qualquer suporte legal, senão na boa vontade, num momento em que se mostra cada vez mais pontual acabar com o terrorismo que vem sugerindo expansão até nos distritos onde o discurso triunfalismo sugeria ter acabado.

Refira-se que os beneficiários do “perdão presidencial” foram apresentados como recrutados nos distritos de Memba, Nacala-Porto, Mogovolas e Mogincual, com promessas de emprego.

Na ocasião, Nyusi referiu que os cidadãos perdoados responderam aos apelos do Governo e à pressão no terreno, resultado da intervenção militar de Moçambique, Ruanda e SADC, e entregaram-se voluntariamente. Um dos supostos perdoados, Adelino Amisse, disse que foi recrutado no distrito de Mogincual, na província de Nampula, e participou nos ataques terroristas na aldeia de Olumbi, no distrito de Palma, em Cabo Delgado.

Psicólogo diz ser arriscado devolver “assassinos” às comunidades sem reabilitação

A iniciativa que visa aliciar os jovens enganados pelos terroristas a voltarem para o convívio familiar sem represálias, peca ainda pelo facto de os perdoados, alguns dos quais cometeram assassinatos bárbaros, incluindo degolações e esquartejamentos, não terem sido submetidos, em nenhum momento, a qualquer tipo de acompanhamento psicológico para a sua reabilitação, de modo a reinseri-los de forma segura nas suas comunidades.

Para Boia Júnior, psicólogo com larga experiência na recuperação psicológica de pessoas em cenários pós-guerras, seria um grande erro e arriscado o Estado colocar de volta este grupo no convívio familiar sem antes ter passado por um programa de psicoterapêutico de ressocialização.

“É necessário garantir que estes jovens não representem perigo para eles próprios, mas também para os outros, pois para quem já tirou a vida de uma pessoa e cometeu crimes hediondos pode facilmente ter sofrido alguma alteração psicológica, principalmente se tratando de jovens e adolescentes”, disse o nosso interlocutor, que trabalhou na recuperação de crianças depois da guerra dos 16 anos.

Boia considera ainda que “deve haver muito preparo psicológico para a comunidade receber essas pessoas e saber como lidar com elas, porque a qualquer momento as coisas podem sair do controle. Vimos pessoas bem jovens pegando em armas e hoje podem ter tido algum tipo de instabilidade psicológica que lhes pode fazer voltar novamente às fileiras, ainda mais sabendo que a guerra continua. Então, é necessário que se dê muito apoio a essas pessoas”, sugeriu.

No entanto, no caso em concreto dos indultados, o Governo prefere aguardar para remediar em vez de prevenir. Quer colocá-los nas comunidades e só em caso de mostrarem comportamentos já previsíveis nos manuais de psicologia é que vai agir.

“Perdoar é voltar a conviver com os supostos ex-terroristas. Continuem com as suas comunidades, se tiverem algum problema, avisem-nos para que os possamos ajudar na sua reintegração”, disse Filipe Nyusi, para depois destacar que é preciso que estes sejam elo entre as autoridades e os que ainda estão com os terroristas.

A marginalização do antiterrorismo?

O perdão de indivíduos que mataram e criaram horrores nas famílias, a ponto de serem reintegrados na sociedade sem qualquer assistência psicológica, já começa a ser um factor de murmúrios dentro das hostes militares.

Nos hostes das FDS, a medida não foi bem acolhida, apesar de se mostrar relevante fora do sector castrense, onde é vista como um factor de estímulo, num momento em que são lançadas medidas com vista a desencorajar a participação dos jovens nas fileiras dos terroristas.

Por outro lado, há uma narrativa que sugere um tratamento marginalizando os grupos que, até dentro das FDS, tem se empenhado para o fim do terrorismo, havendo problemas de logística que manifestam, não por falta de capacidade orçamental, mas por negligência mesmo das chefias. Havendo indicação de detenção de indivíduos que antes empenharam-se no antiterrorismo, mas que nunca foram reconhecidos.

De recordar que, em Setembro, Filipe Nyusi apresentou, em Mocímboa da Praia e na cidade de Pemba, na província de Cabo Delgado, outro grupo de alegados ex-terroristas. Na mesma altura, Bernardino Rafael, Comandante-geral da Polícia da República de Moçambique (PRM), fez a apresentação de outros supostos ex-integrantes do grupo.

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