Vendedores do Mercado de Peixe vão submeter queixa-crime contra juíza

SOCIEDADE
  • Que indeferiu o pedido do embargo das obras no espaço
  • “O colono negro nos roubou o espaço”, desabafam os vendedores
  • Quitéria Guirengane diz que a injustiça é combustível para continuarem a lutar
  • “Envolvimento de ex-titulares de órgãos da justiça mostra a podridão” – V. Mondlane

A guerra entre o Conselho Municipal de Maputo e os vendedores do Mercado do Peixe está longe do fim. A decisão do Tribunal Judicial de KaMpfumo, que segundo os queixosos recebeu ordens superiores para indeferir o pedido de embargo da obra, não é fim do processo. De acordo com o porta-voz dos vendedores do Mercado do Peixe, Jacinto Mandjate, os vendedores vão, nos próximos dias, submeter uma queixa contra a juíza do Tribunal Judicial de KaMpfumo, ao mesmo tempo que vão continuar com manifestações de rua até o seu grito ser ouvido. Aliás, na última semana, saíram à rua e, apesar das tentativas de inviabilização e restrições de uso de dísticos por parte da polícia, conseguiram juntar mais vozes à sua causa, com destaque para Venâncio Mondlane, que não tem dúvidas de que num país sério este devia ser caso de polícia com pelo menos um edil preso.

Duarte Sitoe

Apesar de sucessivas derrotas numa batalha com titãs, ou seja, altas figuras do partido Frelimo, governantes, procuradores, juízes e até bancários que formam a Cooperativa Vila Praia, Lda, os vendedores do mercado do peixe continuam sem vergar e prometem lutar até ao fim.

Entendem que a edilidade da capital moçambicana usurpou o espaço para interesses económicos de privados, numa lista que inclui Alberto Vaquina, antigo Primeiro-Ministro; Augusto Paulino, antigo Procurador-Geral República; Machatine Munguambe, antigo Presidente do Tribunal Administrativo; Ozias Pondja, antigo Presidente do Tribunal Supremo e actual Juíz Conselheiro do Conselho Constitucional; Ernesto Gove, antigo Governador do Banco de Moçambique; Jorge Ferrão, antigo ministro da Educação e actual Reitor da Universidade Pedagógica de Maputo.

Uma semana depois de ter sido conhecida a lista dos accionistas da empresa que se beneficiou do espaço do antigo mercado do peixe, que pertence aos vendedores desde 1973, o Tribunal Judicial de KaMpfumo indeferiu o pedido de providência cautelar que exigia a interrupção das obras no espaço em disputa.

A decisão do Tribunal aumentou a insatisfação dos vendedores do Mercado de Peixe e estes fizeram valer o artigo 51 da Constituição da República e voltaram à rua para expressar o seu descontentamento contra a usurpação do espaço. Bem equipados e munidos dísticos e cartazes, os vendedores não se deixaram intimidar com o contingente policial destacado para boicotar a manifestação.

Antes do arranque da manifestação pacífica, as autoridades da lei e ordem informaram aos manifestantes que estes deviam marchar em silêncio e sem exibir dísticos. Depois de uma longa maratona de negociações, as duas partes chegaram ao acordo, ou seja, os manifestantes aceitaram as condições impostas pela polícia.

Entretanto, o “acordo de paz” entre as duas partes durou apenas poucos metros, uma vez que os vendedores recuperaram os seus batuques, dísticos e cartazes para mostrarem o seu descontentamento com o modus operandi do Conselho Municipal de Maputo.

Não vamos baixar os braços”

Para além de prometer recorrer da decisão da juíza que indeferiu o seu pedido de embargo de obras, asseguram que vão continuar a lutar por todos os meios que tiverem à sua disposição para verem os seus direitos restituídos.

“Não iremos cruzar os braços. Para além de recorrer, iremos submeter uma queixa-crime contra a juíza, pela sua forma de agir. Ela negou-nos o direito à defesa. Vamos continuar a lutar pelos nossos direitos. Queremos que o Conselho Municipal da Cidade de Maputo cumpra com a sua palavra. Não se justifica o que está a acontecer hoje. Pedimos a quem de direito para repor a legalidade”, declarou Jacinto Manjate, porta-voz dos vendedores.

Prosseguindo, o porta-voz dos vendedores falou das condições exploratórias e abusivas que os vendedores têm sido alvo no novo Mercado do Peixe, tendo destacado a falta de espaço e as taxas proibitivas cobradas pelos gestores do mercado.

Marta Mabjaia, de 58 anos de idade, visivelmente agastada com a usurpação do espaço do antigo Mercado do Peixe, apontou que os vendedores não vão baixar a guarda e que vão continuar, sem tumultos, a exigir os seus direitos.

“Não saímos à rua para lutar com ninguém. O espaço do antigo Mercado do Peixe é nosso, mas o Município de Maputo nos seduziu com a proposta de reassentamento e indemnização, o que de certa forma ainda não aconteceu. A nossa luta continua, não vamos desistir”, disse, para depois lembrar que o espaço hoje abocanhado pela elite era um pântano.

“O colono negro nos roubou o espaço”

Marta Mabjaia conta que obtiveram aquele espaço em pleno período colonial, mas mesmo diante do temível regime de Salazar nunca experimentaram uma amargura igual a que estão a ser submetidos por aqueles que chamou de “colono negro”.

“Aquele terreno que hoje está a dar espaço à construção de prédios era pântano e fomos nós que limpamos, mas agora o município diz que o espaço é dele. Estávamos naquele espaço desde 1973 e nunca tivemos problemas com o colono, e hoje o colono negro nos roubou o espaço para oferecer aos antigos dirigentes. Não vamos desistir, vamos lutar com as nossas armas para recuperar o que nos é de direito. Destacaram a polícia para nos intimidar, mas, ao meu ver, tinham que mandar a polícia ir prender aqueles que usurparam o nosso espaço”, desabafou.

Américo Macamo, outro vendedor, referiu que, recentemente, solicitaram uma reunião com os representantes legais dos novos proprietários do espaço onde estava instalado o antigo Mercado do Peixe, mas, debalde, a contraparte decidiu “gazetar” o encontro sem dar explicações.

“Estamos diante de uma quadrilha. Na semana passada, pedimos um encontro com os supostos donos do espaço que é nosso por direito e eles nos indicaram os seus representantes, mas no dia marcado ninguém apareceu.  Isso mostra que eles reconhecem que estão errados. Essa guerra apenas está a começar. Faremos de tudo para ver os nossos direitos salvaguardados”, prometeu.

Suspeitando de alguma corrupção envolvendo altas figuras do município e do governo na cedência do espaço, Macamo aponta que o Conselho Municipal da Cidade de Maputo está preocupado em encher os seus cofres, e para tal não tem medido esforços.

“É vergonhoso o que está a acontecer na Cidade de Maputo. As reformas que estão a ser implementadas beneficiam apenas o Conselho Municipal ao invés do cidadão. Hoje, somos humilhados no novo Mercado do Peixe e pagamos taxas nunca vistas, porque os nossos dirigentes venderam o espaço para os empresários. Não temos outra alternativa a não ser aceitar as condições do colono negro que está a nos escravizar”, desabafou.

“Não nos surpreendem os nomes das figuras envolvidas na usurpação do espaço”

Pelo facto de o maior número dos lesados serem mulheres, o Observatório das Mulheres foi das primeiras organizações a juntar-se à causa dos vendedores. Quitéria Guirengane, secretária executiva daquela organização não governamental, considera que o Estado se demitiu das suas responsabilidades de proteger o cidadão.

Quitéria Guirengane aponta, por outro lado, que há uma relação muito dura de ausência de diálogo, mas também de resistência em que o Estado cumpra com as suas responsabilidades. Aliás, Quitéria Guirengane não ficou surpreendida com o envolvimento dos altos quadros do Governo na bolada do espaço do novo mercado do peixe.

“Infelizmente, não nos surpreende, no Estado moçambicano, que as listas tenham os mesmos rostos, as mesmas proveniências, que mostram que há pessoas que são mais moçambicanas do que as outras e que se dividem o bolo ainda no forno, não permitindo que aquelas pessoas que realmente se sacrificam para garantir que o bolo seja produzido tenham algum espaço ou uma fatia. Isto nos deixa agastados, mas nunca surpreendidos, e é mais uma razão para continuarmos a lutar em defesa das nossas mães”, justificou.

Venâncio Mondlane fala de desumanidade extrema de quem governa o país

Quem também não ficou surpreso com a usurpação do espaço do antigo Mercado do Peixe é o deputado da Renamo, Venâncio Mondlane, que já foi candidato à presidência do município de Maputo.

“Não é nenhuma surpresa que isto tenha acontecido. É uma matéria que tive a oportunidade de estudá-la e entrevistar as pessoas envolvidas muito antes desta notícia sair. A grande questão que se coloca aqui é o sentido de desumanidade extrema que encetou as pessoas que estão a governar este país”, anota.

Mondlane lembrou que antes de se avançar para o novo espaço, os vendedores tiveram a iniciativa de reabilitar o antigo mercado e nisso baterem muitas portas, tendo recebido uma resposta favorável da Agência de Cooperação Japonesa. Quando se apercebeu do sucesso na mobilização de recursos, o município intrometeu-se e acabou abocanhando as obras quando soube que tinha muito dinheiro em jogo.

“O município dizia que não reconhecia o mercado, mas, em 2010, os vendedores foram ter com a Agência Japonesa de Cooperação, que disponibilizou 12 milhões de dólares para a construção do mercado de raiz, e o município disponibilizou o terreno onde está o actual Mercado do Peixe, mas quem começa às obras de construção daquele mercado é a Agência de Cooperação Japonesa, que tinha um consultor externo, e quando o município apercebeu-se que tinha muito dinheiro começa a fazer chantagens”, anota.

Venâncio Mondlane aponta que qualquer negócio no espaço do antigo Mercado do Peixe tinha que ser feito com os vendedores e refere que David Simango devia estar a ver o sol aos quadradinhos.

“David Simango, na minha opinião, devia estar por detrás das grades. Os escândalos que ele fez neste país são incríveis. Não só aquilo que levou ao julgamento das luvas que recebeu das empresas que andaram a estragar a Julius Nyerere, mas foi um dos homens que deu cabeçada aos vendedores dos Mercado do Peixe. É um criminoso. É vergonhoso, e o envolvimento de ex-titulares de órgãos da justiça mostra a podridão total a que esse país foi lançado”, conclui.

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