Comissão Parlamentar de Inquérito diz que vídeo do porta-voz do SERNIC foi manipulado

DESTAQUE POLÍTICA
  • Não se apurou existência de nenhum deputado barão
  • Inteligência diz que houve retirada da condicional “se” da versão original do vídeo
  • Guerras políticas na Zambézia podem estar por detrás da manipulação do vídeo
  • Um dos detidos é primo de Caifadine Manasse que enfrenta um processo disciplinar por promover intrigas

 

A Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Assembleia da República vai apresentar, esta quarta-feira, o relatório da investigação sobre um suposto deputado envolvido no tráfico das drogas. O Evidências teve acesso ao relatório e os contornos da sua produção. Do resultado, depois de ouvida toda nata da inteligência envolvida no apuramento dos factos, consta que, afinal, o áudio e o vídeo da conferência de imprensa do Serviço Nacional de Investigação Criminal (SERNIC) foi deliberadamente manipulado, o que veio a distorcer o conteúdo do assunto e criar um possível imaginário de um “barão das drogas” na Assembleia da República. A única relação que o Evidências conseguiu estabelecer do assunto da apreensão das drogas com o parlamento está no facto de um dos detidos apresentados no relatório da CPI ser primo de Caifadine Manasse que, coincidentemente, está a enfrentar um processo disciplinar por supostamente promover intrigas no partido, sobretudo no círculo eleitoral da Zambézia.

Nelson Mucandze

É já amanhã que vai ser conhecido o relatório final da Comissão Parlamentar de Inquérito que durante mais de dois meses investigou um suposto envolvimento de um deputado da Assembleia da República no tráfico de drogas. Sem nenhuma surpresa, o relatório interceptado pelo Evidências não conseguiu apurar nenhum deputado-barão, contudo traz revelações bombásticas.

Entre as principais constatações que podem encerrar toda a suspeição sobre o caso, está o facto de, segundo a Comissão de Inquérito, todo o alarido criado a volta do caso do deputado barão ser baseado num vídeo supostamente manipulado, segundo se extrai no relatório.

Durante as investigações, os deputados da CPI inqueriram várias pessoas e entidades, sendo que mesmo os que terão feito circular a notícia, quando questionados no decurso da produção do relatório e nas declarações dadas durante a audição explicaram que para produção de “acusações” e outras notícias foi a partir do vídeo da conferência de imprensa, que, afinal, foi manipulado.

“A informação veiculada nas redes sociais e em alguns órgãos de comunicação social, incluindo as declarações imputadas por certa imprensa ao porta-voz do SERNIC, sobre o alegado envolvimento de um deputado da Assembleia da República no tráfico de droga usando o Porto de Macuse, Distrito de Namacurra, Província da Zambézia, não constituí a verdade”, conclui o relatório.

Durante a audição, Nelson Valente Rego, director-geral do SERNIC, diz ter tomado conhecimento por via das redes sociais e pela imprensa que no dia 22 de Novembro de 2022, que o “Porto de Macuse é uma das novas portas de entrada de drogas pesadas” e que o SERNIC “solicitava permissão para interrogar um deputado apontado como o barão de drogas na Zambézia”.

Rego explicou a CPI que a informação não constituía a verdade, porque a solicitação deve ser formal e não pelos medias e que nos autos não existe um pedido nesse sentido.

Uma omissão que pode ter mudado tudo

E foi em respostas a estas “inverdades constantes nas referidas informações”, que a direcção do SERNIC na Zambézia, convocou uma conferência de imprensa, que teve lugar no dia 25 de Novembro de 2022, com o objectivo de apresentar os dois indivíduos detidos, dentre eles, um militar e um professor, envolvidos no tráfico de drogas, como também, serviu para desmentir a informação que dava conta do envolvimento de um deputado no crime.

Ao longo da entrevista, de acordo com Rego, o porta-voz do SERNIC na Zambézia foi questionado pelos jornalistas nos seguintes moldes: “há informações de envolvimento de um deputado no tráfico de drogas. O que é que o SERNIC tem a dizer?”. Ao que respondeu que o porta-voz terá respondido “se houve aqui um deputado que está envolvido neste esquema, nós estamos abertos para trabalhar neste caso e não temos problemas de investigar até trazer a verdade”.

Mas curiosamente, o vídeo colocado a circular, omitiu a condicional “se”, que antecede a palavra “houve”, fazendo entender que o porta-voz do SERNIC disse:”…houve, aqui, um deputado que está envolvido neste esquema, nós estamos abertos para trabalhar neste caso e não temos problemas de investigar até trazer a verdade…”.

O relatório revela que o vídeo foi objecto de escuta colectiva por parte de todos os membros da CPI e foi confrontado com o áudio original, tendo se foi confirmado a retirada do condicional “se”.

Para Rego, o vídeo que foi posto a circular nas redes sociais, é resultado do uso abusivo das tecnologias de informação e comunicação e das redes sociais.

“Não há envolvimento de uma figura politicamente exposta”

No seu relatório de mais de 50 páginas que o Evidências teve acesso, onde são arrolados entre vários órgãos, para além do SERNIC, a Procuradoria-Geral da República, a Autoridade Tributaria (AT), os Serviços de Inteligência e Segurança do Estado (SISE), a Polícia da República de Moçambique, a CPI concluí que “em nenhum momento foi referenciado e/ou citado pelas entidades inquiridas a todos os níveis, o envolvimento de uma figura politicamente exposta”.

Dos vários órgãos ouvidos, o destaque vai ainda para o director do SISE na província da Zambézia. Ele teria esclarecido que sobre os contornos da apreensão da droga, existem dois momentos. No primeiro momento, o SISE participou do processo que culminou com detenção e apreensão da droga em Macuse, “detinha toda a informação, desconhecendo a relacionada com o envolvimento de um deputado”, esclarece.

Informou a CPI que das diligências feitas, não se produziu nenhuma evidência do suposto envolvimento de uma figura política. “O SISE confirma que o SERNIC não disse ou não se pronunciou nos termos veiculados por alguma imprensa como atesta a gravação em sua posse que foi objecto de escuta colectiva”, anota do documento.

Adiante, aclara que estão em curso diligências com vista a esclarecer o caso pelas autoridades competentes, com dois indivíduos detidos e já constituídos arguidos. Os dois indivíduos detidos são um tenente das Forças Armadas, Lucas Martinho, afecto à base naval de Macuse e um professor de desenho na Escola Secundária Bonifácio Gruveta Massamba, Abdala Ali Molde, em Macuse. O Evidências sabe que este último é primo de Caifadine Manasse, antigo porta-voz da Frelimo, que foi destituído do secretariado no último Congresso do partido.

Curiosamente, Manasse está a enfrentar um processo disciplinar exarado pelo secretariado provincial, onde é acusado de fomentar intrigas e referenciado como sendo quem terá espalhado a acusação para atingir alguns adversários políticos internos.

Alias, os contornos da manipulação do vídeo do porta-voz do SERNIC sugerem intrigas de camaradas na Zambézia. A fama de que Manasse é um deputado intriguista não é recente, antes mesmo do XII Congresso da Frelimo, vinha sendo associado a um braço de ferro com o secretário-geral do partido, Roque Silva.

No processo disciplinar, Manasse é acusado de promover intrigas dentro do partido por desqualificar os dirigentes da Frelimo e por promover uma suposta campanha de envolvimento de mais membros do partido na província, no mesmo escândalo onde está seu primo.

CPI propõe melhorias para uma maior fiscalização

No capítulo reservado as constatações, a CPI começa por esclarecer que não houve troca de tiros, mas sim disparos efectuados pela PRM na tentativa de neutralizar uma viatura e seus ocupantes no local onde foi apreendida a droga e uma embarcação. Este é um outro dado que reforça a tese da CPI, de que houve esforços de confundir a opinião pública.

O caso barão de drogas foi despoletado pelo deputado Venâncio Mondlane durante a sessão, tendo solicitado, em nome da sua bancada, a criação da Comissão de Inquérito. No entanto, a CPI diz que não houve um cruzamento de fontes por parte do denunciante para perceber os contornos do caso.

“O SERNIC Central e Provincial não foram contactados pela bancada parlamentar da Renamo e nem de forma individual por um deputado sobre o alegado envolvimento de um deputado no tráfico de droga em Macuse”, escreve a CPI, sublinhando que “não existe nenhuma evidência, nem informação credível, oficial e processual sobre o envolvimento de um político ou de um deputado da Assembleia da República no tráfico de droga em Macuse”, frisou.

Num outro desenvolvimento, dada a extensão e porosidade dos postos fronteiriços que é muito propensa a ser usada pela rede do crime organizado, mormente para o narcotráfico; a CPI considera urgente necessidade do mapeamento das actividades ligadas ao narcotráfico e consequente definição de medidas de combate ao tráfico de drogas.

É que Zambézia tem 444 km de Costa, entretanto o INAMAR não dispõe de meios de patrulhamento e fiscalização marítima. A CPI lamenta, entre outros, ter enfrentado alguns constrangimentos relacionados com o tempo fixado pela resolução para a realização dos trabalhos, que não foi suficiente dada a complexidade do objecto da comissão.

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