Ordens superiores que se sobrepõem à lei

OPINIÃO

Alexandre Chiure

Moçambique não está nos seus melhores dias. A situação tende a piorar. Há queixas em todos os sectores da sociedade, que se manifestam na qualidade de vida, em permanente deterioração. As emoções estão exaltadas. O cidadão apropria-se do legado de Azagaia e grita “Povo no poder”, um  dos valores soberbos da própria Frelimo, a de 1975, que fere os ouvidos dos políticos de hoje que não aprenderam a lição segundo a qual trabalhar lado a lado com o povo sem nunca o abandonar é a chave da harmonia e da vitória.

Uma Frelimo que era o povo e povo que era a Frelimo. O povo que mandava porque a Frelimo de 1975 deixava mandar. O povo, amado e acarinhado, que tinha uma palavra a dizer nos processos políticos.

Hoje, este mesmo povo é reprimido, espancado e impedido de marchar quando quer homenagear o seu herói popular, o Azagaia, por ordens superiores cumpridas rigorosamente pela Polícia. Ordens que se sobrepõem à Constituição da República.

A Polícia sente-se no direito de pontapear a Lei-Mãe à luz do dia. Impede que o cidadão usufrua dos seus direitos constitucionais. O direito à liberdade de expressão e de imprensa. O direito à reunião e manifestação. Ainda assim, acha-se dona da razão. Os outros, a maioria do povo moçambicano, é que estão errados.

Uma Polícia com vícios do passado, apesar de sucessivas injecções de sangue novo na corporação. Não consegue agir como uma Polícia republicana que obedece unicamente à lei.A polícia aparenta admitir orientações estranhas ao comando da corporação. Ordens emanadas por políticos de colarinho branco. Comandos dos tempos do regime de partido único que continuam activos.

A polícia confunde o seu papel, que é acompanhar as marchas sem nunca tomar partido das mesmas e se substituir aos políticos. A polícia tem a obrigação de garantir a segurança dos manifestantes. Evitar que haja algum tipo de aproveitamento contrário aos objectivos da marcha. Desencorajar actos de vandalismo e agressões físicas e assegurar que seja uma marcha verdadeiramente pacífica.

Viola os direitos humanos. Espanca cidadãos em pleno exercício dos seus direitos. Bloqueia estradas, armada até aos dentes, ante manifestantes desarmados. Lança gás lacrimogénio. Provoca a fúria popular que pode resvalarnumadesordem sem precedentes porque a geração dos jovens de hoje não tem medo, segundo diria o académico Lourenço do Rosário.

A polícia está nervosa. Não confia no seu próprio patrão, o povo, que lhe garante o pão de cada dia e a quem tem a obrigação de proteger.Há o uso incorrecto do poder, num país em que existe uma total incerteza sobre o que será o amanhã.

O fenómeno Azagaia é apenas um pretexto para o povo gritar por socorro, o grito de um povo cheio de frustrações. Jovens que não têm ocupação formal porque os três milhões de empregos prometidos ainda não saíram do papel e mantêm-se como promessa.

Passam por enormes dificuldades e por necessidades extremas que lhes tornam vulneráveis a aliciamentos e a vergar perante promessas falsas. Alguns deles,infelizmente,deixaram-se levar por essas ofertas e estão a combater contra a sua própria pátria nas matas de Cabo Delgado. Destroem bens comuns: hospitais, escolas, edifícios públicas. Queimam as casas dos seuspais, tios, primos e vizinhos. Colocam em causa a independência, cuja conquista custou muito sangue. Tudo porque as oportunidades que surgem têm nome.

Ser um empresário sério, honesto e que honra os seus compromissos perante o fisco, tem o seu preço. Auditorias atrás de auditorias. Inspecções atrás de inspecções, mas o vizinho do lado tem uma vida tranquila. Sonega os impostos como se fosse o melhor caminho.

No mundo empresarial vive-se uma vida sem rei nem roque. Para se ganhar concursos públicos tem de se corromper alguém. Para que se aufira o que é de direito depois da prestação de serviços ao Estado, tem de seproceder da mesma forma porque, caso contrário, fica-se a ver navios. Uma forma de ser e estar que causa muita preocupação.

Em pleno estado de direito democrático em Moçambique, as ordens superiores sobrepõem-se às leis e os guardiões da legalidade não dizem nada. A lei é forte para os fracos e fraca para os fortes.

Cresce o medo de que, do simples grito “O povo no Poder”, nasça,doravante,um forte movimentocom motivações políticas. Algo parecido com a “primavera árabe”. Que o Egipto e a Líbia o digam, países antes económica e politicamente estáveis que, após a “revolução”, não voltaram a ser os mesmos.

Os políticos acreditam que o povo pode protagonizar um golpe de Estado, mesmo sem armas em punho ou algo parecido.Opovo está cansado e saturado de tanto sofrer com o custo de vida. Falam da descoberta de tal plano em que um grupo de cidadãos pretendia, a coberto da marcha, chegar ao poder por vias inconstitucionais, mas a polícia não prende ninguém. É estranho, muito estranho.

Os partidos políticos da oposição, a Renamo e o MDM, chamam a si todo o protagonismo da organização da marcha em homenagem ao Azagaia, de uma iniciativa cívica e sem cores políticas pertencente a jovens diluídos no processo que enerva o sistema.

A polícia culpa jornais e canais de televisão do ambiente de agitação que se vive no País e aponta nomes que incluem edis de algumas autarquias governadas pela oposição, deputados e activistas sociais. A comunicação social carrega a cruz ao dar a voz aos que não têm voz. É culpada de exercer as suas actividades com profissionalismo, independência, imparcialidade e, como é claro, com alguns excessos à mistura.

Esta é parte da radiografia do nosso País. Estamos mal!

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