Universidade moçambicana entre “loucura” e padronização

OPINIÃO

Luca Bussotti

Um recente vídeo do deputado da Renamo, Venâncio Mondlane, despertou a minha curiosidade. O vídeo explica como o estudante universitário moçambicano deveria ter maior autonomia intelectual do seu orientador e, no geral, dos docentes das várias cadeiras, propondo uma “loucura”, que consistiria num compromisso sério consigo próprio e com a ciência. No pensamento filosófico houve vários intelectuais que apelaram para recorrer a loucura para quebrar mecanismos padronizados que só uma postura forte, com ideias inovadoras, podia ultrapassar.

No Simpósio, o Sócrates de Platão apresenta o amor como uma loucura que ultrapassa o ego (eu) para entrar no “nos”. Erasmo de Roterdã publicou seu Elogio em 1511, enquanto estava adoentado e hóspede de Tomás Moro, a que o livro foi dedicado. A loucura, que fala na primeira pessoa, dizia ter sido criada pela Ignorância e a Embriaguez. E que ela acompanha a vida toda do ser humano, conseguindo desenvolver um pensamento alegre e vivaz, fora dos esquemas habituais de uma sociedade já na altura padronizada. No pensamento contemporâneo será Nietzsche a incarnar o espírito da loucura como quebra de habitus, práticas e lugares comuns, abrindo idealmente a época do pos-hegelismo e do pos-positivismo.

O pensamento africano e Afro-Americano está repleto de tentativas de ultrapassar a condição a que poderes hegemônicos ocidentais tinham relegado o homem negro, com o seu fardo bem descrito por Basil Davidson. Em Moçambique as propostas de um pensador como Severino Ngoenha, primeiro mediante um novo contrato social, depois com um Manifesto em que a parte do controlo “entre nós” assume destaque especial também tem contribuído bastante a alimentar esta sã loucura de que o deputado Mondlane falava no seu vídeo.

Entretanto, o sistema acadêmico está preso, e será muito complexo fazer com que o estudante, na sua singularidade, se solte e contribua a soltar o pensamento social contemporâneo. Trata-se de laços de vária natureza: acima de tudo, organizacionais. Os cursos pós -laborais se tornaram prevalecentes no país, e exclusivos no nível de pós-graduação. O que significa ter estudantes cansados, pouco motivados e interessados quase que exclusivamente a conseguir a nota, muito mais do que a aprender para fins de maior conhecimento. Fica difícil descobrir outro país em que não existe um só curso de Pos-graduação no período diurno, ou seja, com estudantes a tempo inteiro.

A segunda limitação é de tipo político. Ao longo dos últimos anos é visível, pelo menos contando com a minha experiência directa, como trabalhos que apresentem um viés crítico com relação a esta ou aquela política governamental não sejam alvo de duras críticas por parte do júri, principalmente em universidades públicas. Críticas não sobre a metodologia ou possíveis inconsistências teóricas, mas sim sobre o posicionamentos  e a interpretação (legítima e corroborada por evidências) que o autor do trabalho entendeu fornecer.

Finalmente, existe uma questão ética muito significativa, que acaba desvirtuando todo o trabalho acadêmico. Uma postura, esta, presente em todas as universidades do país, mas de forma mais acentuada nas privadas, provavelmente mais tolerantes para com o plágio de seus “clientes” , com o medo de perder alguns deles em prol da concorrência. Isto é válido a todos os níveis, desde a licenciatura até o doutoramentos. O ministério competente e sobretudo o Cnaq deveriam prestar mais atenção a tais práticas, pois a qualidade de um trabalho científico se mede acima de tudo a partir da sua autenticidade.

Imaginar uma postura sadiamente louca por parte de pessoas singulares neste contexto não é fácil, embora existam exemplos esporádicos de estudantes que dão corpo e alma para a causa da ciência. Encontrando pontualmente aqueles obstáculos que procurei descrever acima. Só que esta causa não pode permanecer isolada: ela deve ter um acompanhamento institucional a todos os níveis, de forma a compor aquela massa crítica sem a qual nenhum país tem um futuro brilhante.

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