O gradualismo, a descentralização e as comunidades locais

OPINIÃO

Luca Bussotti

Num seu recente pronunciamento, o filósofo Severino Ngoenha apontou o actual modelo de descentralização como não trazendo benefícios para as comunidades locais. E concluiu -assim como outros académicos e analistas – que o a forma melhor de estado seria o federalismo.

Trata-se de afirmações importantes e que poderão supostamente abrir um debate agora, que poderá concretizar-se talvez na próxima legislatura. Uma mudança desta natureza implica a superação da filosofia de fundo que sempre orientou a política moçambicana quanto a forma de estado.

Não resta dúvida de que o estado Moçambicano foi e continua sendo centralista. E que o “gradualismo” adotado – não podemos esquecer: inicialmente com o acordo da Renamo, como demonstra a rejeição, por parte das duas bancadas, da lei 3/94 – não deu certo.

Com efeito, o gradualismo, pelo menos até o início da década passada, incomodava as duas principais formações políticas do país: por um lado, a Frelimo julgava qualquer processo de descentralização como sendo um risco: risco de perder parte do seu poder, principalmente nos grandes centros urbanos do país, tornando evidente também a fratura entre um sul frelimista e um centro-norte renamista, e portanto ressuscitando o pesadelo da “questão étnica” . Em Angola o assunto foi resolvido de forma muito mais segura: até hoje não existe nenhuma eleição para os níveis descentralizados do poder político. Mas Moçambique teve outra história, e sobretudo, depois do conflito dos 16 anos, não tinha recursos minerais suficientes para torná-lo mais autônomo diante da comunidade internacional. Assim, a descentralização foi um preço a ser pago a comunidade internacional ocidental, de que o país largamente dependia.

Entretanto, tudo foi feito com muito gradualismo. Assim, diante do risco que a descentralização representava para a Frelimo, tal processo não era bem visto nem do lado da Renamo. Dhlakama queria assumir o poder central, substituindo-o a Frelimo, e por outro lado da descentralização podiam surgir figuras capazes de ameaçar seu poder dentro do partido. O que aconteceu com Daviz Simango na Beira foi muito claro, neste sentido. Só depois de se aperceber que a máquina da Frelimo não podia ser derrotada a nível central é que virou a estratégia do partido para a superação do gradualismo, enfatizando a necessidade de adoção do federalismo. O resultado foi um acordo – que não está sendo respeitado – para introduzir mecanismos eleitorais para escolher os administradores distritais. Muito pouco, mesmo do lado da Renamo.

Mas o pior – como Ngoenha enfatiza – é que as populações locais não estão a gozar dos benefícios típicos da descentralização. Primeiro porque a (pouca) descentralização feita nunca foi acompanhada de uma paralela descentralização financeira. É ainda Maputo, em larga medida, a distribuir, de frequente com critérios arbitrários, os recursos financeiros para os municípios. E depois porque os mecanismos participativos locais são, na maioria dos casos, ausentes. Além disso, o actual gradualismo cria uma evidente desigualdade jurídica entre cidadãos do mesmo país: há quem tem direito de voto nas eleições autárquicas e quem não, pois seu território  ficou fora do processo de municipalização. Para que isso sirva ficou evidente nesses primeiros dias de recenseamento para as eleições autárquicas do Outubro próximo: a Frelimo dispõe de cidadãos que não irão votar nas eleições municipais enquanto residentes em territórios não municipalizados, assim essa massa de gente pode ser feita recensear em municípios próximos às suas residências para diminuir o risco de a Frelimo perder este ou aquele município.

Se o federalismo representa a dimensão única para tentar evitar a implosão de Moçambique como entidade nacional, a completa municipalização (ou em alternativa eleições distritais que devem acontecer juntamente com as municipais, e não com as presidenciais) constitui a única opção para limitar o mecanismo de fraude eleitoral sistemática que, desde o recenseamento, está infringindo o pacto fundamental entre governados e governantes: o pacto de que governa quem foi escolhido pelos eleitores, seja qual for a sua pertença política.

Se de reforma constitucional é lícito falar, convinha que isso fosse feito não pensando no prolongamento do poder de quem já teve a oportunidade de guiar o país para o tempo estabelecido pela lei- mae, mas sim na reestruturação do Estado no sentido federalista, e em como envolver todos os cidadãos, ao mesmo tempo, em processos eleitorais locais capazes de devolver protagonismo a às comunidades, verdadeiras beneficiárias da descentralização.

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