23 de Maio, o dia dos honestos

OPINIÃO

Luca Bussotti

Não é uma recorrência internacional reconhecida formalmente, a do dia de 23 de Maio; porém, deveria ser transformada num dia de reflexão em volta daquilo que a criminalidade organizada conseguiu fazer contra um homem que dedicou a vida inteira a uma missão de honestidade, comprometimento cívico e luta às injustiças. Um homem que com toda a sua escolta, três policias, mais a sua mulher, foi morto, com 23 pessoas feridas.

Esse homem chamava-se Giovanni Falcone, e de trabalho fazia o juiz. Um juiz que tinha lutado contra a mafia siciliana ao longo de toda a sua vida, uma mafia naquela altura particularmente poderosa e agressiva, com a predominância do clã dos “Corleonesi” (de Corleone, a pequena vila de que os principais chefes deste grupo de mafiosos eram oriundos) de Totó Riina, com resultados surpreendentes. Foram os Corleonesi que iniciaram justamente no dia 23 de Maio de 1992 uma sangrenta estação de atentados contra as maiores autoridades da justiça italiana. A seguir ao Falcone (a que é dedicada a escola italiana de Maputo), o outro juiz, Paolo Borsellino, também foi assassinado a frente da casa da mãe, na Via D’Amelio, no dia 19 de Julho do mesmo ano.

Giovanni Falcone foi morto mediante um atentado que quis ter uma evidência demonstrativa que ia além da brutalidade de qualquer assassinato múltiplo, principalmente contra pessoas de traço honesto e até heroico: uma bomba da potência equivalente a cerca de 500 Kg de tritolo abriu uma cratera na autoestrada que o juiz Falcone (que naquela altura trabalhava em Roma, junto ao ministério da Justiça, e que se encontrava na Sicilia em missão de serviço) estava a percorrer para chegar na sua localidade de destino, em Palermo.

Ninguém devia saber da chegada de Falcone na capital da Sicilia: depois do “maxi-processo” contra a mafia em 1986-87, que tinha visto Falcone como o primeiro acusador dos chefes mafiosos da época, descobrindo toda a organização, estrutura e figuras-chave de “Cosa Nostra” graças às revelações do ex-mafioso Tommaso Buscetta, este magistrado constituía um alvo privilegiado da mais poderosa organização criminosa do mundo. Entretanto, o avião protocolar que de Roma foi para Palermo para levar Falcone estava cheio de deputados sicilianos que apanharam esta boleia para voltar à sua terra por alguns dias. Um deles, inclusivamente, foi acusado de ter comunicado aos Corleonesi sobre a chegada em terra siciliana de Falcone, mas nunca foi instruído um processo-crime contra a ele. O que está certo é de que alguém falou o que não devia, deixando entrever mecanismos de cumplicidades entre partes do Estado e Mafia siciliana. Mecanismos que demonstraram quão podre eram, naquele momento, as instituições italianas, que não só pouco apoiavam o trabalho de juízes como Falcone e Borsellino, mas que, nalguns expoentes, colaboraram à sua eliminação física.

Entretanto, nesta situação de guerra Estado-Mafia, foi justamente o Estado que conseguiu se erguer, desempenhando o papel que sempre devia ter protagonizado: o de defensor dos seus servidores mais honestos e corajosos, travando uma luta que em poucos anos ganhou contra as famílias mais sangrentas da mafia siciliana, cujos líderes, Totó Riina antes, Matteo Messina-Denaro depois, foram capturados, decapitando assim toda aquela organização, e colocando a palavra fim à sua estratégia do terror.

O papel da sociedade civil foi decisivo: num território, o da Sicilia, onde sempre tinha reinado o silêncio dos demais diante da criminalidade organizada de natureza mafiosa, grupos de jovens, de membros de associações católicas e laicas iniciaram a se manifestarem nas praças, publicamente, contra os abusos e os horríveis atentados da Mafia. E isso deu certo: a mobilização civil, juntamente com uma actividade investigativa “limpa”, não mais viciada por compromissos e cumplicidades contra um poder que estava desafiando o poder constituído resultou na captura e depois na condenação dos maiores chefes mafiosos. Hoje, esta mafia já não existe, embora quer na Sicilia, quer na Calabria com a Ndrangheta ou na Campania com a Camorra, a luta do Estado italiano contra estas organizações criminosas está longe de ser ganha.

O caso italiano, que culminou com as eliminações dos juízes Falcone e Borsellino, representa o paradigma daquilo que um Estado nunca deveria fazer: cooperar com perigosos grupos criminosos durante dezenas de anos, secundar os seus interesses, encobertar seus assassinatos. Até a década de 1980 do século passado ninguém, numa sala de tribunal italiana, podia falar de “Mafia”, pois este conceito – se dizia – é algo de cultural, mas a Mafia, em si, não existe. Juízes comprados e altamente corruptos ajustavam os processos contra os mafiosos, que nunca sofriam condenações, ou – quando isso acontecesse – iam ficar presos durante períodos curtos, durante os quais continuavam a mandar, mesmo de dentro da prisão, determinando os negócios e os atentados necessários para o bem da organização.

Esta forma de actuação por parte do Estado começou na Itália, mas infelizmente não foi exclusiva daquele país. Com efeito se, na Itália, esta constante cooperação, ou acobertamento de práticas mafiosas por parte das instituições foi filha da “guerra fria” (a ocupação pelos aliados da Sicilia durante a segunda guerra mundial foi favorecida por grandes mafiosos italo-americanos como Lucky Luciano, Calogero Vizzini e Vito Genovese), em outras circunstâncias mais recentes, por exemplo em África, o Estado acabou confundindo-se com grupos e actividades criminosas. Narco-Estados, práticas neo-patrimonialistas, corrupção dilagante foram apenas alguns dos elementos que caracterizaram os jovens Estados africanos durante vários períodos e de forma sempre diferenciada. Mas com uma constante: a infiltração das instituições por parte de grupos criminosos locais, ou até internacionais.

Para que isso não aconteça é preciso ter instituições fortes: ou seja, autónomas, não condicionadas por incompreensíveis e indizíveis “causas de força maior”, predispostas até a enfrentar conflitos com os outros poderes para conseguir manter a sua missão e o único co promisso que o poder público tem, o com seu povo e seus cidadãos. Sem esta postura de seriedade e comprometimento será muito fácil ceder aos apetites criminosos e egoísticos deste ou daquele grupo, chegando até a teorizar que é possível matar ou enganar os cidadãos para conservar privilégios de frequente adquiridos mediante actividades ilícitas.

O juiz Falcone, honesto entre instituições contaminadas e corruptas, ao invés de ser protegido, foi primeiro marginalizado, depois morto. Seguir o seu exemplo em todo o mundo, e não apenas na Itália, deveria ser a missão última de todos os servidores públicos, respondendo aos princípios constitucionais e, ainda mais no geral, aos valores éticos universais comungados pela larga maioria da humanidade.

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