Ainda sobre a padronização das nossas universidades

OPINIÃO

(Em resposta a Wilson Nicaquela)

Luca Bussotti

Com uma certa surpresa, Wilson Nicaquela, docente e activista social de Nampula, publicou há poucos dias um POST no Facebook, inspirando-se a um artigo que apresentei semana antepassada nesta coluna. A surpresa derivou do facto de nem sempre se ter noção, quando se escreve num semanário, se as análises ali efectuadas terão um retorno junto aos leitores…E depois quantos leitores, quais e interessados a que tipo de assuntos?

Dúvidas que com as plataformas digitais já não se tem, pois elas informam sobre número de visualizações, índice de apreciação, etc. Entretanto, o POST do Wilson revelou que aquilo que eu tinha observado e compartilhado acerca das dificuldades e limitações de vária ordem que se passam na academia moçambicana constituem também preocupação para outros académicos. O que, por si só, é um bom sinal.

Wilson levanta uma questão importante, que eu não tinha muito desenvolvido no artigo por ele referenciado: a de como inovações na pesquisa, na área das ciências sociais, podem ser mal recebidas por parte de júris e comissões de exames, inclusive no momento fatídico da defesa de uma monografia, dissertação ou tese, consoante o grau académico.

Mais uma vez, estamos aqui num terreno de fronteira entre academia, política e mercado. Acima de tudo, abordagens pouco propensas em aceitar inovações na metodologia científica são típicas de países, como hoje Moçambique, que em outros âmbitos da vivência social adoptam a mesma postura. Seria difícil imaginar de ter, num País de democracia madura, uma academia fechada a novas propostas e abordagens: a sociedade civil não ia aceitar isso, relegado a academia a um papel inaceitável, de instituição conservadora e regressiva. Pelo contrário, em situações como a em que se encontra hoje Moçambique, o que está se passando é o espelho da pouca abertura democrática, da escassa tolerância com relação às ideias que não agradam ao poder, enfim, de um fechamento progressivo. A academia – felizmente com excepções –  reflecte este tipo de abordagem: seria de admirar, portanto, se o seu pessoal, principalmente em universidades públicas, estivesse aberto ao ouvir inovações e perspectivas fora do campo traçado não tanto pela ciência, quanto pela política..

O outro elemento que vale a pena realçar é quanto o mercado – assim como as funções que muitos alunos, inclusive em cursos de pós -graduação desempenham na administração pública – influencia na vida acadêmica.

Refiro-me a abordagens em que o trabalho científico, ao invés de procurar compreender fenômenos e assuntos complexos, tenta logo resolver problemas. A lógica da consultoria, assim como a de resolução de tarefas administrativas de funcionários que a noite se tornam estudantes, nunca esquecendo das suas obrigações de trabalho, permeou há muito tempo a academia moçambicana. Os problemas identificados são os da administração pública, não de uma situação complexa que envolve actores sociais diversificados, os quais mantém relações circulares, hierárquicas, de gênero, geracionais e que devem ser compreendidas usando uma perspectiva em muitos casos qualitativa e profunda, sem recorrer a tabelas e percentagens. Na maioria das vezes a academia nacional não consegue sair da consideração simplista e positivista de saber qual é a causa, qual o efeito (ou o “impacto”, um lema quase taumatúrgico, filho dos chorudos financiamentos estrangeiros que precisam de medir o que, geralmente, medir não se pode) e o que seria possível fazer com um “objecto” de pesquisa que nunca se torna sujeito, protagonista, que nunca tem ideias e representações da realidade diferentes daquelas “normalizadas” de instituições nacionais e estrangeiras.

Das muitas dissertações que acompanhei em várias instituições de ensino superior, ou de que fui oponente, o tema da economia informal foi um dos mais frequentes. E com razão, considerando a importância deste elemento na vida comum de muitos cidadãos Moçambicanos e africanos de forma mais geral. A abordagem com que – estudantes e docentes – geralmente olham para este fenómeno tem pontos fixos, que só com um grande esforço – nem sempre bem-sucedido – podem ser removidos. Primeiro: a fuga ao fisco dos comerciantes informais. Um ponto de vista típico da administração pública, legítimo na perspectiva desta, mas redutivo e até sem sentido na ótica de cidadãos que vislumbram nesta actividade a única saída de sobrevivência. Não se olha, portanto, a como o Moçambicano desenvolve estratégias de resiliência, a como, a partir de zero recursos (financeiros e de capital humano) consegue montar um pequeno negócio que vai permitir que a sua família coma diariamente…ainda por cima não se olha ao facto de serem as mulheres, em várias circunstâncias, a se tornarem empreendedoras de fortuna, sem a ajuda de ninguém e de nenhuma instituição, mas por vezes conseguindo…Segundo: qual o impacto desses negócios? Isso também um tema legítimo de pesquisar, mas também relegado a uma perspectiva reducionista e positivista, e que denuncia um fraco conhecimento da realidade antropológica de Moçambique. Dificilmente os entrevistados dirão qual foi o verdadeiro impacto do seu negócio, pois ninguém, e principalmente quem não paga impostos ou os paga de forma mínima, vai contar ao investigador que sim, ele ou ela conseguiu um bom negócio, que está a sustentar a escola dos filhos e até permitiu comprar um carro…Para depois o investigador falar isso publicamente, arruinando a vida destes pequenos comerciantes. Mas nada, nós queremos saber qual foi o impacto, considerando os comerciantes informais como mero objecto de pesquisa. Quase nunca se faz um trabalho sério e demorado de observação no terreno, dificilmente se procura compreender se existem redes de solidariedade entre esses pequenos empreendedores, se eles montaram associações colectivas de mútuo interesse,  assim como nunca se sabe o que é que eles pensam das administrações municipais com que devem lidar…

Este é apenas um exemplo de como os mecanismos de padronização impedem que a academia moçambicana – limitada mente ao âmbito da pesquisa social e política – produza novo saber, fora dos carris clássicos e já arcaicos da tríade causa-efeito-solução do problema. A demonstração deste fracasso é dada pelo facto de os maiores produtores de saber estarem fora da academia: IESE, OMR e os demais centros independentes de pesquisa já abandonaram a academia, tendo consciência de que estando dentro dela dificilmente se poderá produzir novo saber, de forma livre e experimentando perspectivas e abordagens inovadoras, mas em outras latitudes já aceites e até incentivadas.

Provavelmente reflexões como as do colega Wilson deveriam ser mais frequentes, e mesmo dentro da academia o princípio de autoridade – ou ipse dixit – deveria ser abandonado. O desafio é voltar ao espírito originário das primeiras universidades medievais, quando existia um poder dominante – o da Igreja Católica -, mas também grande liberdade e até confrontação entre estudantes e entre estes e os docentes, mediante a disputatio. Pois o objetivo era comum: procurar uma verdade (humana e social) de que ninguém detinha o monopólio e que era necessário encontrar com a contribuição de todos, e fora de esquematismos inimigos da academia e do saber.

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