Independência e representação

OPINIÃO

Luca Bussotti

Cada ano, pontualmente, a cada 25 de Junho, a retórica nacionalista procura dar novas provas de si. A celebração da independência de um país não é questão banal. Ela tenciona recordar eventos e processos históricos que levaram, muitas vezes com o sacrifício e até com o sangue, à desejada independência política. No caso de Moçambique se tratou de se livrar de um colonialismo opressor, que nem na própria madre pátria lograva grandes simpatias, como o 25 de Abril demonstrou.

Entretanto, a retórica dos discursos oficiais, provavelmente inevitável e comum a quase todos os países do planeta, esconde outro aspecto que costuma ser deixado de lado: a independência representa a todos os cidadãos moçambicanos? Ou seja, foi ela inclusiva?

É preciso voltar rapidamente a quanto aconteceu ao longo da história de Moçambique independente para responder a esta questão. A grande habilidade da Frelimo foi de que, contando com um Portugal fragilizado, ela conseguiu se apresentar na mesa das negociações como a única força viva da sociedade moçambicana capaz e titulada para abrir as negociações com a antiga potência colonial. Com os meios disponíveis – políticos mas também militares – a Frelimo tinha resolvido uma questão que uma nação como Angola não será capaz de arrumar até 2002, ano da morte de Savimbi e da paz definitiva naquele país: a questão da representatividade do povo moçambicano. Em Angola a independência foi proclamada ao mesmo tempo por três movimentos que estavam disputando o poder de representar aquele povo mesmo antes da obtenção da autonomia política de Portugal. E o cenário andou-se alastrando e agravando, tornando o conflito angolano uma questão internacional, com o envolvimento directo das grandes potências que protagonizaram a guerra fria. Em Moçambique este cenário foi evitado em razão da força da Frelimo, que derrotou inimigos internos, assim como movimentos alternativos que se tinham formado, geralmente com ex-membros da própria Frelimo (como Uria Simango), mas sem terem a capacidade de disputar a hegemonia político-militar com o movimento liderado na altura por Samora Machel.

Por isso que a Frelimo conseguiu se apresentar à mesa das negociações e diante da opinião pública nacional e internacional como a única, verdadeira e legítima representante do povo moçambicano. Que esta pretensão tivesse um fundo de verdade é inegável, entretanto a euforia de deter o monopólio desta representação se confrontou quase de imediato com a dura realidade: com efeito, se os inimigos do passado (Uria Simango, Joana Simeão, Selina Simango e muitos outros) foram primeiro capturados, depois liquidados fisicamente, um novo, inesperado inimigo se apresentou no horizonte que parecia livre de nuvens: a Renamo. Aqui também é preciso fazer uma breve contextualização histórica: se é verdade que a Renamo foi financiada e, provavelmente, inicialmente pensada de fora do país, dentro do clima de guerra fria que na altura se vivia ainda, foi claro depois de pouco tempo que este movimento tinha raízes sólidas, pelo menos em algumas partes do território nacional, nomeadamente no Centro-Norte e no campo. Isso significava que a Frelimo não tinha a legitimação de representar todo o povo moçambicano, como sempre foi a sua pretensão desde antes da independência.

Como resolver este problema foi assunto muito sério, provavelmente até hoje não resolvido. Esta circunstância deve ser explicada através do tipo de transições que se deram nos momentos cruciais da história do país: a primeira foi a adopção de um regime de partido único, juntamente (de forma oficial desde 1977) com a adesão aos princípios do marxismo-leninismo. A segunda foi a transição (1990) para um regime multipartidário e para a abertura ao mercado (liberalismo). A terça pode ser considerada a assinatura dos novos acordos de paz de 2019 entre o governo e  a Renamo, delineando um relacionamento em parte diferente entre governados e governantes. Em nenhuma dessas transições o “povo” foi chamado directamente a pronunciar-se. No primeiro caso a pressa deu-se em razão de uma possível opção democrática, que Spínola incentivava, e de que a Frelimo não queria ouvir, com o risco de partilhar o poder com outras forças políticas que na altura tentaram propor este modelo pluralista. No segundo a urgência derivou da guerra que estava destruindo o país, e na necessidade de transformar a adesão às instituições de Bretton-Woods em uma nova Constituição. O paradoxo é de que a Constituição pluralista de 1990 foi aprovada por um parlamento ainda monopartidário, sem que nem o povo, nem a própria Renamo pudessem ter uma palavra directa e explícita sobre ela. Finalmente, o acordo de paz de 2019 foi assunto fechado entre governo e Renamo. A sociedade civil, o MDM e vários partido extra-parlamentares tentaram, em várias circunstâncias, de intervir, tendo uma palavra a dizer no novo conflito e no fim dele, mas sem sucesso. Desta forma, de um regime a representação única o país passou a ter um regime a “dupla representação desigual” (Frelimo-Renamo), ignorando as instâncias do resto da sociedade moçambicana que, no entretanto, tinha evoluído e se tinha complexificado com relação à situação de 1975. Para concluir este quadro vale a pena recordar que o único instrumento legal previsto pela Constituição (o referendo) nunca foi traduzido numa lei específica, tão que, hoje, se alguém quisesse propor este instrumento de consultação directa dos eleitores seria necessário primeiro que o parlamento aprovasse uma normativa ad hoc. Assim como é preciso lembrar que as formas de eleição directa dos vários líderers dos executivos foram todas elas retiradas (salvo, por enquanto, a figura do presidente da república), corroendo cada vez mais o poder dos eleitores em favor das prerrogativas dos partidos políticos.

Nem a abstenção eleitoral cada vez mais baixa despertou a atenção dos dois principais partidos do país. Eles representam, hoje, somados, menos da metade dos eleitores moçambicanos, mas mesmo assim assumem-se como os únicos representantes do povo. Em contrapartida, a comunidade internacional continua aceitando este esquematismo político e lógico, uma vez que mediar a propor a assinatura dos acordos de paz entre duas partes fica mais fácil e prático do que envolver outros sujeitos que foram historicamente excluídos deste complexo processo. Com o resultado de que a instauração de um clima de paz “positivo” continua sendo adiado sine die, fragilizando as bases para uma convivência realmente harmoniosa entre os Moçambicanos.

Se calhar é disto que valeria a pena reflectir no dia da independência: a independência do antigo colono não significa necessariamente a capacidade de representação de toda a população por parte de quem governa e de quem faz oposição. Uma ideia mais larga de representatividade poderia ajudar na implementação de políticas mais inclusivas e menos corporativas, superando a situação de privilégio de grupos ou indivíduos ligados a quem está no poder, e envolvendo inteiras populações hoje marginalizadas. Se a próxima revisão constitucional – provavelmente inevitável para reequilibrar os poderes do Estado – fosse seguida de uma larga consulta pública e de um referendo popular, o dia da independência adquiriria maior valor e poderia ser celebrado com mais satisfação por todos os Moçambicanos.

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