A importância da rua

OPINIÃO

Luca Bussotti

A rua sempre foi importante na vida do género humano. Na rua a gente anda, se encontra, conversa, protesta. Foi na rua, no Peripato, que Aristóteles conversava com seus discípulos acerca da sua filosofia; foi na rua que muitas personagens que fizeram a história da humanidade actuaram, desde Jesus até Cícero, e foi na rua que um jovem filósofo francês, Marc Sautet, no início da década de 1990, propôs criar momentos de convívio e compartilhamento de ideias em bares, cafés, lugares públicos. Einstein revelou que a sua teoria da relatividade foi elaborada na rua, enquanto ele andava de bicicleta, contribuindo de forma decisiva para o progresso da ciência.

A rua foi onde se realizaram as mudanças mais importantes na história da humanidade: desde a revolução francesa até os grandes concertos da idade contemporânea, como o de Woodstock, de 1969, até as greves e manifestações que constituíram um divisor das águas em muitas partes do mundo. Como não recordar as Primaveras Árabes de 2011, os três milhões de italianos em Roma contra o primeiro governo-Berlusconi em 1994, assim como as manifestações destes dias na França, que estão a abalar meia Europa? Para não falar de guerras, conflitos e genocídios. Muita parte da vida de qualquer ser humano é feita na rua.

Em Moçambique, a rua foi sinal de vida social assim como de grandes eventos. Foi na rua que, a 25 de Junho de 1975, foi proclamada oficialmente a independência, num Estádio Salazar, rebaptizado Estádio da Machava, e foi na rua que o país, a partir sobretudo dos anos Noventa, viu manifestações e protestos contra um projecto de nação que não estava a cumprir o que tinha prometido com a independência de Portugal. Na rua houve manifestações muito violentas, em 2008 e 2010, e ainda em 2013, com Alice Mabota, da Liga Moçambicana dos Direitos Humanos, contra os raptos e uma guerra entre Governo e Renamo, que naquela altura estava a se aproximar de novo, como um pesadelo colectivo e recorrente.

Entretanto, salvo manifestações esporádicas (Madjermanes, alguma iniciativa dos partidos da oposição e de activistas sociais), a rua deixou de constituir um espaço de confronto em Moçambique. Depois das manifestações violentas de 2008 e de 2010, o aparato de controlo do Estado se fez mais intenso e eficaz, alargado-se a vários cantos da cidade (Maputo, mas também as outras mais importantes do país), o número de polícias foi incrementado consideravelmente, o espaço físico da urbe patrulhado, mesmo com novas tecnologias. Em paralelo, os activistas e movimentos sociais se retiraram das ruas, escolhendo formas alternativas de protestos, acima de tudo as redes sociais. O espaço virtual acabou tornando-se o lugar principal da disputa política, das denúncias contra o governo e das acções de controlo de quem (G40 e outras figuras próximas ao executivo) devia contrastar tais tendências lá onde a luta se tinha concentrado. Mas a rua se tornou monopólio quase que exclusivo das forças da ordem governamentais, limitando o direito à cidade de que, já em 1969, o historiador francês Henri Lefebvre falava.

Os únicos que, com uma certa continuidade, não deixaram de ocupar os espaços físicos foram os rappers engajados, acima de tudo Azagaia, mas também outros mais jovens, como André Cardoso e outros. Suas mensagens se fizeram cada vez mais contundentes, e foi por isso que também sofreram a repressão por parte das autoridades públicas, como a história pessoal (e a morte) do Azagaia demonstra. A morte dele constituiu um divisor de águas com relação à disputa política e à ocupação do espaço público. O funeral do dia 14 de Março junto ao município de Maputo e ainda mais a manifestação do dia 18 do mesmo mês representaram o início de uma nova estação: de forma consciente ou não, muitos membros do novo movimento “Povo no Poder”, ou “Geração 18 de Março” (em oposição à “Geração 8 de Março”), reiniciaram a fazer das ruas o seu palco principal de luta. Não que eles não utilizem redes sociais ou media tradicional; antes pelo contrário, o uso destes meios são fundamentais para este novo movimento. Entretanto, o facto de querer ocupar as ruas, manifestando publicamente e abertamente contra o governo, representa o elemento de novidade do panorama político nacional, a que as forças policiais responderam com a violência. Uma violência aparentemente (e efectivamente) desnecessária, mas que revela uma preocupação: que a rua possa se transformar num lugar não apenas de simples protesto, mas sim de verdadeira revolução, estilo Primavera Árabe. Até agora não tem havido nenhuma possibilidade de diálogo entre os manifestantes do “Povo no Poder” e as autoridades: por um lado, estas últimas proibiram, de facto, de praticar um direito constitucional, ou a manifestação pacífica de qualquer cidadão. Por outro, os membros de movimento encenaram manifestações de tipo novo, e que em parte surpreenderam as autoridades: por exemplo, rápidos “raids” com cartazes a vista expostos durante pouquíssimo tempo nas ruas de Maputo e outras cidades maiores do país; denúncias, mediante vídeos, das irregularidades registadas um pouco por todo o país ao longo do recente recenseamento eleitoral. Porém, a rua continuava um tabu, infringida apenas mediante mecanismos pontuais e de eficácia incerta, como acima mencionados.

No dia 24 do mês passado o cenário mudou. De forma surpreendente, Salomão Muchanga, líder da Nova Democracia, conseguiu organizar uma manifestação, “a Marcha da Liberdade”, nas ruas de Maputo, com um aparato policial que só acompanhou os manifestantes, sem nenhuma intervenção, nem abuso. Quanto Muchanga revelou junto à imprensa é significativo de como um actor político de cunho nacional teve de actuar num contexto de liberdades limitadas, em que o governo está apavorado com qualquer forma de manifestação que implique a ocupação de espaços físicos como ruas e praças. Muchanga, pelo que ele declarou, foi ter com o próprio Presidente da República, e com as demais autoridades, para assinalar seu direito em manifestar, uma vez que todos os trámites legais tinham sido cumpridos, acompanhados por um trabalho diplomático profundo.

Provavelmente ninguém irá lembrar quantas pessoas participaram nesta marcha, nem o que foi dito nela, quais os objectivos e qual o percurso feito. O que iremos lembrar dela é que, provavelmente, Muchanga e a Nova Democracia voltaram a abrir, nas condições possíveis dentro de um país que está a sofrer uma evidente regressão democrática, o caminho para que a rua possa constituir um espaço de livre manifestação de ideias e não apenas um lugar de policiamento e de medo.

Só os próximos meses é que dirão se isso será verdade ou se constituiu apenas um episódio momentâneo, ditado pela habilidade diplomática de um líder político da oposição e, portanto, irrepetível.

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