“O que é mais importante para ti, Sérgio? É o livro circular ou é a tua circulação?”

DESTAQUE SOCIEDADE
  • O ultimato dos esquadrões (da morte) à livre criação artística
  • “Camaradas” esticam a corda e ameaçam Sérgio Raimundo por causa do título do seu livro
  • Jovem escritor queixa-se da falta de solidariedade por parte dos escritores e da AEMO
  • “Professor Ferrão disse que por questões familiares preferiu não avançar”

A cidade de Maputo testemunhou, esta segunda-feira, o lançamento, em Moçambique, do livro “As ancas do Camarada Chefe” do jovem escritor Sérgio Raimundo, conhecido como Poeta Militar. Mas antes, aquele que é conhecido como uma das coqueluches da jovem nata de escritores nacionais viveu momentos de grande tensão na sequência de ameaças contra a sua integridade e vida. Através de seu telefone, recebeu várias chamadas de ameaças, sendo que a mais marcante dava-lhe um ultimato para escolher entre a circulação do seu livro e sua circulação. “O que é mais importante para ti, Sérgio? É o livro circular ou é a tua circulação?”, insistia uma voz desconhecida do outro lado da linha, claramente chateada pelo título da obra. Em entrevista ao Evidências, Sérgio Raimundo explica o porquê do título livro e de onde teriam partido as ameaças que vem sofrendo a ponto de ter visto, inclusive, trocado o apresentador do seu livro pelas mesmas razões. Por contas das ameaças que o poeta e escritor vem sofrendo, vários artistas e a Rede Moçambicana dos Defensores de Direitos (RMDDH vieram a público exigir às autoridades competentes a abertura de uma investigação de modo a identificar e responsabilizar o autor das ameaças, mas o autor diz não ter sentido o carinho da Associação dos Escritores Moçambicanos (AEMO),

Renato Cau

Num contexto em que a taxa de analfabetismo no país continua alta e há cada vez mais pessoas a lerem os livros e jornais somente pela capa, bastou uma compreensão dúbia do título da obra de Sérgio Raimundo para desconhecidos partirem em defesa do “camarada chefe”, sem nem sequer conhecer o conteúdo da obra.

Neste caso, a vítima não foram somente as palavras, como também o autor da obra que ficou perplexo, ao se ver ameaçado no seu próprio país depois de ter lançado a obra em Portugal, há cerca de um mês.

Ao Evidências, o autor explica que “As Ancas do Camarada Chefe” é uma fala de um narrador numa das crónicas em que descreve um chefe de uma repartição pública. Na verdade, é uma crítica ao espírito de “chefismo” que existe em Moçambique, pelo que na opinião do autor está a ser levantada uma polémica desnecessária.

Explica que no fundo o título é uma pequena parte de um texto que faz parte do livro e surgiu quando este foi tratar o seu Bilhete de Identidade, onde acabou ouvindo uma conversa de uma das funcionárias que dizia “oh, camarada chefe, tu sabes que as quotas do partido devem ser pagas”?

“Chamou-me atenção por ela ter falado isso alto e numa instituição pública. Momentos depois, o tal chefe saiu da sala onde estava, fiquei impressionado porque era um chefe com umas ancas que me impressionaram. Então, acabei usando uma parte dessa descrição para o título do livro”, defende.

A velha mania de leitura do livro pela capa

Poeta Militar, como se consagrou nas artes, considera que os autores das ameaças tenham feito uma analogia directa ao título do livro, relacionando-o a alguém que ele como autor do livro desconhece e avança ser responsável pelo que escreve e não pelo que os outros percebem.

“No fundo, as pessoas que me estão a atacar e a criar esse alvoroço ainda não tiveram o livro em mãos, porque se tivessem já lido o livro iam discutir outros textos que são mais ferozes em relação ao título. Mas, quem ainda não leu fica se baseando no título, é só isso”, destaca o jovem que vive há alguns anos em Portugal, onde cumpre compromissos académicos.

Conta que a partir desse momento começou a receber chamadas de números codificados e sem identificação, nas quais um homem do outro lado da linha perguntava repetidamente: “o que é mais importante para ti, Sérgio? É o livro circular ou é a tua circulação? Tens que escolher uma das duas. Não achas melhor cancelares o lançamento do livro e voltares a Portugal, e vais fazer a tua vida à vontade? Tu és pago pelos portugueses para vir agitar isto”, relata Sérgio Raimundo.

Acrescenta que “no dia 06 de Julho é que recebi muitas ameaças e confesso que por um momento eu quis mesmo desistir de tudo isto, mas depois comecei a receber mensagens de pessoas que me querem bem, de Portugal, e que diziam para desistir de tudo aqui e ir lançar o livro lá, por estar em perigo”. Nos dias seguintes, conta que as chamadas ainda vinham de forma insistida, porém em menor número, e só quando desabafou publicamente sobre o assunto é que as ameaças cessaram.

Se viu forçado a parar com as pré-vendas do livro, pois o seu sobrinho, que era quem fazia as entregas, também começou a receber chamadas com teor ameaçador.

“Eu fechei as pré-vendas porque eu corria o risco de pensar que ele vai fazer a entrega do livro quando vai a uma armadilha. Mas, há muita gente que ainda queria”, relata.

Porém, não pretende parar de escrever e muito menos cancelar o lançamento do seu livro porque, enquanto criador, escrever é, para si, “um acto de resistência e a minha crónica é para isto, e eu fico feliz. E este livro dedico aos jovens e está escrito na primeira página, pelas reflexões que estão lá. Só lamento muito por conta dessas ameaças, porque de facto criaram-se um certo desconforto, eu tenho família e só nestes dias é que comecei a circular porque não me sentia à vontade.”

Professor Ferrão evocou questões familiares

A primeira apresentação do livro, embora não formal, foi em Portimão, em Portugal, onde foi muito bem aceite e muito vendido. Embora ainda a milhas da terra que o viu nascer, lembra que uma moçambicana presente vaticinou que o livro poderia causar problemas cá em Moçambique. Embora não tenha levado a observação a sério, isso ficou marcado em sua mente.

Mas, ao que tudo indica, não foi o único ameaçado por aqueles que pretendem amordaçar a palavra. O incontornável reitor da UP e homem das artes, Professor Jorge Ferrão, tinha apadrinhado o lançamento do seu livro e tinha se predisposto a apresentá-lo, mas este acabou sendo forçado a desistir, depois da publicação do primeiro cartaz de actualização dos detalhes do lançamento.

“Um pouco antes falei com o professor Ferrão, precisando de uma foto dele posando com o livro e ele aceitou. Mas aquela foto criou muita confusão que eu não entendi. Entretanto, numa madrugada, o professor Ferrão mandou-me uma longa mensagem dizendo que já não podia fazer mais a apresentação da obra por conta das instituições que lhe têm como profissional, por conta do barulho que está a rolar nas redes sociais e que por questões familiares preferiu não avançar com a apresentação do livro e pedia que todo o material de divulgação que tinha o nome dele fosse eliminado. E eu não respeitei. É por isso que já temos um novo cartaz e novo apresentador”, relata.

AEMO preferiu abraçar o silêncio

O autor mostra-se surpreso pelo silêncio absoluto da Associação dos Escritores Moçambicanos (AEMO) que até a data da nossa entrevista – passada sexta-feira – não havia endereçado qualquer mensagem a si, seja para o confortar ou mesmo para procurar saber ao certo o que estaria acontecendo.

“A Rede dos Direitos Humanos já publicou algo repudiando o que está a acontecer comigo, são jornalistas que me procuram, mas nunca recebi nada da associação dos escritores. Quem me liga, na sua maioria, são pessoas que não estão ligadas à literatura. Onde estão os escritores? Talvez seja porque nunca fui bem-vindo na associação. Recebi muita força de Quitéria Guirengane, dos escritores portugueses, de Mia Couto, que é uma pessoa íntegra, e de Pedro Pereira Lopes, outros estão no silêncio”, lembra.

Mostra-se desapontado com alguns escritores que ao longo dos dias têm lhe puxado para baixo, dizendo que ele deve desistir do lançamento do livro.

“Não vou recuar, acima de tudo quero transmitir uma mensagem a alguns escritores moçambicanos que são parvos; tenho recebido mensagens de alguns escritores moçambicanos a me aconselharem a desistir do lançamento”, condenou.

Diz que tem recebido de amigos moçambicanos e da comunidade portuguesa que, aliás, cedeu o seu centro cultural para o lançamento da obra, a única garantia que fez o autor acreditar até o último minuto que o lançamento não seria prejudicado.

“Se tivesse sido agendado para outro lugar eu tenho a certeza que eu teria sido banido. Eu tenho a certeza, porque há mesmo ordens superiores para privar este lançamento”, lamentou, para depois mostrar interesse em conhecer quem está por trás das ameaças “para dar os meus parabéns a tal pessoa porque pela primeira vez na vida tem interesse em assuntos ligados à literatura, porque eu acho que passou a vida toda a ameaçar pessoas não ligadas a literatura e indirectamente essa pessoa poderá estar no dia 17 para comprar o livro”.

Para Poeta Militar, estas ameaças são um atentado, não contra e nem aos seus livros, e sim à dignidade humana, e questiona “o que seria do ser humano sem a arte?”.

Sérgio Raimundo Militar foi a Portugal para cursar o seu mestrado em Ciências de Educação, onde conseguiu um emprego e passou a morar. Veio a Moçambique exactamente com objectivo de lançar o livro “As Ancas do Camarada Chefe” e a posterior se instalar de volta em Moçambique, mas refere que por conta das ameaças que vem sofrendo não vai mais residir cá.

“Não há condições”, sentencia o jovem que em pouco tempo estabeleceu em Portugal uma rede de contactos e amigos, o que lhe valeu um emprego que, segundo diz, o mantém estável.

“Essas ameaças que estão a me fazer é uma grande estupidez, dói ver que o livro que esgotou em Portugal ao chegar em Moçambique para ser lançado está a ser combatido por pessoas nem o leram e ficam se baseando no título”, finaliza.

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