Uma catástrofe anunciada

DESTAQUE SAÚDE
  • Já há mortes e danos permanentes em pacientes devido a greve
  • Mais de 600 pessoas morreram no HCM desde o arranque da greve
  • O drama de quem perdeu um ente querido devido a paralisação das actividades

Ainda não há aproximação entre o Governo e a Associação Médica de Moçambique. A paralisação das actividades tem semeado luto e dor nas famílias, em quase todos hospitais da Cidade e província de Maputo, nomeadamente Hospital Central de Maputo, Hospital Geral José Macamo, Hospital Provincial da Matola e Hospital Geral de Mavalane. Há relatos de aumento exponencial do número de mortes desde o início da greve dos profissionais de saúde. Isaura Magaia e Gabriel Muchanga perderam familiares durante a vigência greve dos médicos e acreditam que se os médicos estivessem em actividade podiam ter evitado o pior. E, à semelhança das várias personalidades que apelam a retoma do funcional normal nos hospitais, eles instam as partes desavindas a fumarem o cachimbo da paz para acabar com a catástrofe já anunciada.

Duarte Sitoe

A falta de entendimento entre o Governo e os médicos está a semear luto e dor nas famílias moçambicanas. Desde que os profissionais de saúde decidiram bater com a porta tende a aumentar o número de óbitos hospitalares.

São vários os relatos de profissionais de saúde que apontam que o Sistema Nacional de Saúde está à beira do colapso. Marlene Magaia trabalha como servente no Hospital Central de Maputo e contou ao Evidências o drama que os pacientes vivem nos últimos dias naquela que é considerada a maior unidade sanitária do país.

“As pessoas estão a morrer nos hospitais. Os médicos que estão em serviço têm feito o seu melhor, mas não tem sido suficiente para salvar vidas. Todos os dias morrem pessoas no Hospital Central de Maputo. É de lamentar o que está a acontecer e acredito que o número de mortes vai aumentar enquanto a greve continuar. O Governo e os médicos precisam chegar a um entendimento para travar esta catástrofe. Acredito que algumas mortes podiam ser evitadas, mas na ausência de médicos experientes acabou acontecendo o pior”.

Um outro profissional de saúde afecto ao Hospital Provincial desabafou através das redes sociais que o Sistema Nacional de Saúde caminha a passos largos do abismo, tendo referido que no intervalo de três dias morreram 16 pessoas na maior unidade sanitária da Província de Maputo.

“Está mal isto. O que acontece nos hospitais é lastimável. Pessoas estão a morrer em série. Saí do hospital na quarta-feira e a enfermaria tinha 21 pacientes. Quando voltei no dia seguinte só restavam oito pacientes e os outros já tinham sido transferidos para a casa mortuária. Dos oito que haviam restado, três morreram nas primeiras horas de hoje e quando ia tomar banho encontrei dois corpos sem vida”, contou.

Isaura Magaia, de 36 anos de idade, perdeu a mãe no dia 30 de Julho do ano em curso. Sem conseguir segurar as lágrimas quando contava o episódio que a mãe viveu antes de partir, Magaia acredita que se os médicos estivessem a trabalhar teriam evitado o pior.

Devido ao drama que viveu, a fonte não tem dúvidas de que nos últimos dias a vida deixou de ser “o maior valor” nas unidades sanitárias da capital.

“Perdi a minha mãe em circunstâncias que até hoje me custa acreditar. Ela foi transferida do Hospital Geral José Macamo para o Hospital Central. Nas visitas ela sempre contava que os médicos que estão em actividade não têm nenhuma experiência. Acredito que a doença dela piorou por culpa daquilo que presenciava no dia a dia. O Hospital Central de Maputo virou um cemitério. Acredito que se os médicos estivessem em actividade a minha mãe ainda estaria viva, mas infelizmente aconteceu o pior. O Governo deve colocar a mão na consciência e criar melhores condições para os médicos salvarem vidas”, disse Magaia, para depois aventar uma suposta conspiração entre os médicos em actividade e as agências funerárias.

“Pelo número de mortes, chego a desconfiar que os enfermeiros que trabalham na ausência dos médicos trabalham em conexão com as agências funerárias. É muito estranho o que está a acontecer nos nossos hospitais. Em quase todos os hospitais há relatos de mortes e quem se beneficia disso são as agências funerárias”.

Por seu turno, Gabriel Muchanga perdeu o filho de sete anos de idade no Hospital Provincial de Maputo. Em conversa com a nossa equipa de reportagem, Muchanga referiu que o filho perdeu a vida por falta de atendimento de qualidade.

“Estou deveras decepcionado com o que está a acontecer no nosso país. Pessoas estão a morrer nos hospitais por falta de atendimento de qualidade. Infelizmente, as famílias estão a sofrer devido à falta de sensibilidade do Governo e dos médicos. Eles juraram salvar vidas, mas agora estão a contribuir para as tirar. Antes da greve não havia registo de muitas mortes, mas nos últimos dias estar na cama de um hospital é angustiante porque a cada manhã há relatos de mortes. Alguém deve se responsabilizar por aquilo que está a acontecer nos hospitais, não se pode banalizar a vida desta forma”.

De acordo com uma investigação publicada esta segunda-feira, 21 de Agosto, pelo Jornal Dossiers & Factos, cerca de 620 doentes perderam a vida quando buscavam assistência médica nos últimos 42 dias de paralisação das actividades no Hospital Central de Maputo.

Refira-se que também há relatos do aumento exponencial de óbitos hospitalares no Hospital Provincial de Maputo, José Macamo e Hospital Geral de Mavalane.

Antevê-se dias piores

A par dos médicos que ameaçam paralisar tudo no caso do Governo continuar com as intimidações, juntaram-se, este domingo (20), os profissionais de saúde que passam a garantir apenas os serviços mínimos em maternidades, berçários e urgências, durante a greve geral de 21 dias iniciada.

“Nós iremos assegurar os serviços mínimos porque estamos a ter alguns avanços. Esses avanços fazem com que tenhamos alguma esperança”, disse na manhã de ontem, em conferência de imprensa realizada em Maputo, o presidente da Associação dos Profissionais de Saúde Unidos e Solidários de Moçambique (APSUSM), o enfermeiro Anselmo Muchave.

Em causa está a greve convocada por aquela associação que abrange cerca de 65.000 técnicos, serventes e enfermeiros.

De acordo com Muchave, falando da intensa negociação entre APSUM e o governo, durante o dia todo de domingo, não foi possível recuar e ficaram estabelecidas visitas conjuntas aos armazéns de medicamentos do Estado, para aferir as suas condições, bem como a alguns hospitais em “estado crítico de funcionamento”, como a associação tem vindo a denunciar, além da “abertura em querer implementar” os enquadramentos destes profissionais.

“Se continuarmos com esse braço de ferro, de não querer ceder, há um momento de agravos, e nós podemos agravar mais. Mas esperamos também, do lado do Governo, que haja uma abertura de espaço. O interesse é do povo. O povo tem medo de ir às unidades sanitárias porque os enfermeiros e os técnicos os tratam mal. Porque é que os tratam mal? Porque recebem mal”, justificou, garantindo que a greve é para continuar.

“De tudo quanto foram as inquietações apresentadas pela APSUSM, nenhuma delas foi satisfeita com resultados tangíveis, pois, do lado do Governo, apenas houve reporte de negociações verbais efectuadas com entidades que não puderam ser provadas e que tais negociações realmente ocorreram. No entanto, o Governo tem 4,5 mil milhões de meticais para gastar nas eleições de Outubro próximo, também comprou 45 viaturas luxuosas avaliadas em 120 milhões de meticais. Contudo, não tem dinheiro para comprar uma simples cama hospitalar ou um simples paracetamol”, disse.

Esta paralisação dos profissionais do sector da saúde arranca no mesmo dia da assembleia-geral da Associação Médica de Moçambique, convocada para decidirem se avançam para um terceiro período de 21 dias de greve, num protesto sobretudo contra cortes salariais, no âmbito da aplicação da nova tabela salarial da função pública, e falta de pagamento de horas extraordinárias.

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