África e a maldição das eleições

OPINIÃO

 Luca Bussotti

Depois de, ao longo da década de 1990, a maioria dos países africanos ter experimentado uma viragem democrática, em parte fruto da vontade popular, imposta pelos doadores ocidentais que foram chamados a resolver as insolvências financeiras de muitos estados africanos, hoje qualquer processo eleitoral tem-se transformado num pesadelo. Os mais supersticiosos poderiam chegar até a pensar que de verdadeira maldição se trate, mas não tem nada de supernatural ou de diabólico nesta circunstância: infelizmente, o continente está a recolher o fruto de uma construção democrática apressada e sem alguns dos elementos fundamentais dos sistemas mais maduros, ainda mais desconsiderando e excluindo as formas decisórias tradicionais que na maioria das sociedades africanas funcionam até hoje.

Os exemplos mais recentes não faltam: o último, ainda não concluído, tem a ver com o Zimbabwe. Depois dos anos de Mugabe e das perseguições a Tsvangirai, hoje o herdeiro político do eterno Robert parece estar a adoptar a mesma estratégia com o seu jovem adversário político, Nelson Chamisa. Organizações tradicionalmente cautelosas, como SADC e Commonwealth, já expressaram as suas significativas reservas em mérito ao desenrolar-se do processo eleitoral, independentemente de quem será o vencedor. No Gabão, o também familiarmente eterno Ali Bongo, filho de Omar Bongo, que tinha governado o país durante 42 anos, está a fazer de tudo para descredibilizar as oposições, apesar de ter sofrido um grave ictus em 2018 e uma tentativa de golpe em 2019, factos que não lhe farão desistir de se candidatar para um terceiro mandato. No democrático Senegal foi muito difícil Macky Sall desistir da ideia de se candidatar a um terceiro mandato, entretanto as oposições também estão sendo perseguidas, com o seu líder, Sonko, preso em Julho passado por razões não claras.

O que está se passando em Moçambique para as próximas eleições autárquicas é observável diariamente. Um recenseamento largamente irregular, violências em várias cidades (os episódios da Beira e a suposta tentativa de assassinato do edil de Nampula, Vahanle, foram apenas os dois mais graves e recentes), a falta de tolerância e aceitação de manifestações dos respectivos adversários políticos, tudo isto mostra o quão difícil seja o exercício sereno da luta política dentro de um sistema democrático.

Tudo isto leva a colocar uma questão fundamental: que impacto estão tendo aquelas filosofias do pensamento africano (Ubuntu, Afrocentrismo, Negritude, etc.) baseadas no humanismo, na paz e no mútuo respeito com relação à realidade social e política do continente? E qual a contribuição da academia, no sentido mais geral, diante do atropelo constante dos mais básicos direitos políticos dos africanos?

A estas questões não existe, até hoje, resposta. Com efeito, se pensadores africanos, afro-americanos e afro-brasileiros extremamente brilhantes conseguem competir, a nível teórico, com seus congêneres ocidentais e asiáticos, na prática sua influência no devir político concreto da África se aproxima ao zero. Isso é diferente daquilo que já há muito tempo se passa nos Estados Unidos ou na Europa. Aqui, figuras de grande renome, de Luther-king a Bobbio, de Maritain a Baumann, tiveram um impacto muito significativo junto à opinião pública ocidental, que por seu turno influenciou escolhas políticas decisivas. Em África, a partir de Moçambique, isso nunca se passou, e a distância entre elaboração acadêmica, onde existe, e prática política tem aumentado ao longo das últimas décadas. A responsabilidade é só em pequena parte dos académicos… São as sociedades africanas a terem esta estrutura compartimentalizada, com domínios bem distintos e que dificilmente dialogam, relegando o interesse público a mera utopia Desta maneira, não se forma aquele intelectual colectivo de que falava Gramsci, que ajudaria a sair de práticas individualistas, familistas, etnicistas ainda típicas das sociedades africanas.

Quanto ao funcionamento da democracia no sentido próprio, é possível distinguir pelo menos dois traços característicos de grande parte da África. Traços que representam, até hoje, obstáculos intransponíveis para que as ideias do humanismo africano, portanto da tolerância e do respeito mútuo entrem no debate público do continente, inclusive em Moçambique. O primeiro elemento diz respeito a opinião pública: no contexto africano, ela continua sendo fraca e desprovida daqueles instrumentos mínimos necessários para avaliar uma certa governança, escolhendo a quem votar com base em critérios, por assim dizer, políticos, ao invés de familiares, clientelistas e até paternalista, quando não por pura imposição. O segundo prende-se com a dimensão da política como algo completamente alheio à realidade diária dos cidadãos, sobretudo num país em que a dupla colonialismo-autoritarismo da Primeira República tem moldado o modo de ser e de agir de largos estratos da população, quem faz política representa uma autoridade indiscutível, quase uma entidade abstracta, que vive num mundo hiperurano, que nunca poderá ser atingido pelos comuns mortais.

Sem tentar diminuir estas duas lacunas e a distância entre a população e os políticos será impossível termos, em África, uma vida pública e democrática decente. É por isso que, provavelmente, teremos de dar razão aos supersticiosos que alegam ser uma maldição aquilo que afecta o continente africano diante dos desafios democráticos, confirmando o dito atribuído a S. Agostinho, “errare humanum est, perseverarem autem diabolicum”.

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