Os pecados de Arsénia Massingue

OPINIÃO

Alexandre Chiure

A demissão, pelo Presidente da República, da ministra do Interior, Arsénia Massingue, a primeira mulher a ocupar aquele cargo, e, agora, a nomeação do general na reserva, Pascoal Ronda, em sua substituição, dominou, esta semana, o debate na arena política do país, tentando especular sobre o que estará por detrás da decisão.

Como devem estar recordados, a iminência do afastamento desta senhora ficou evidente a partir da sessão do Conselho de Ministros (CM) do dia 27 de Julho em que o seu comandante em chefe mostrou-se agastado com o facto de, no âmbito de combate aos raptos, até agora a polícia tenha detido peixe miúdo.

Nesse encontro, Nyusi chegou, inclusive, a perguntar-lhe, em termos severos, “qual é o jogo aqui?”, o que deixou claro que estava insatisfeito com o desempenho da corporação quanto aos raptos.

O segundo pecado de Arsénia Massingue tem a ver com um hipotético projecto israelita para o combate aos raptos em Moçambique que teria sido apresentado, em privado e em primeira mão, pelos seus autores, a um grupo de famílias indianas e maometanas.

O documento está na posse do Ministério do Interior desde os tempos do anterior ministro, Amade Miquidade, com a proposta de comparticipação nos custos de execução. O objectivo é que o Estado moçambicano tenha acesso a uma tecnologia apropriada que permita a eficácia e rapidez na neutralização dos bandidos.

Ao que tudo indica, o projecto israelita não avançou porque não colheu o consenso no seio do Ministério do Interior. Algumas hierarquias policiais não se simpatizaram com a ideia, em particular o SERNIC que, alegadamente, receia que sejam revelados alguns esquemas dentro da instituição. Quando o PR exigiu explicações a Arsénia Massingue, esta não soube o que dizer.

Nessa reunião do CM ficou claro que Nyusi não gostou da situação e que os seus dias como ministra do pelouro estavam prestes a findar. Houve, praticamente, uma ruptura do ponto de vista de confiança política que o Chefe de Estado depositava nela.

O outro factor não menos importante refere-se ao clima de insubordinação em que o Comandante Geral da Polícia, Bernardino Rafael, mandava mais do que a ministra do Interior, situação que se arrasta desde o governo de Amade Miquidade.

A pergunta que se faz é se se justificava ou não o PR afastar a senhora do cargo? A resposta é que sim, mas não é justo, no caso dos raptos, ela carregar a cruz sozinha. Primeiro, porque não cabe ao ministro do Interior planear e executar operações visando a perseguição e detenção de criminosos, incluído os ligados ao crime de raptos.

Não é tarefa de um ministro do pelouro dirigir a investigação de crimes. Quem faz o dia-a-dia da polícia é o Comandante Geral. Abaixo dele estão os directores da Ordem, Operações e a chefia do SERNIC. É verdade que ela, como responsável máximo, tem a cota-parte da culpa, mas não nos devemos esquecer que é um cargo político.

Não estou aqui a propor a demissão em bloco destas chefias, mas se há problemas na polícia. Se o seu desempenho não é bom. Se a mão da polícia não consegue chegar aos mandantes de raptos, o responsável não pode ser apenas o ministro do Interior. É preciso cavar um pouco mais. Falaria, até, da necessidade de purificação das fileiras policiais.

Quero aqui dizer que os problemas dos raptos não se levantam apenas em relação à polícia. A prova disso são as queixas sistemáticas da procuradora-geral da República, Beatriz Buchili, sempre que vai ao parlamento apresentar o seu informe anual sobre o estado da justiça.

Ela foi clara ao dizer que o envolvimento, no negócio, de alguns advogados, magistrados, agentes do SERNIC e de sectores ligados ao tratamento da matéria cria fragilidades na investigação e instrução de processos e põe em risco a vida dos investigadores.

Estas lamentações da PGR mostram quão é a gravidade da situação. Não estaremos a ser justos ao associarmos os raptos à figura da ministra do Interior como se fosse o único responsável. Temos que ser profundos na análise e estendê-la a outros factores.

Apesar de custar acreditar devido à conjuntura em que vivemos, é um facto que o país tem bons polícias ou investigadores que saíram das academias e que estão comprometidos com causas nacionais. Só que o seu trabalho não tem sido vistoso porque estão integrados num sistema corrompido e infiltrado por bandidos que mais não fazem do que desvirtuar o sentido das coisas.

Hoje, por exemplo, torna-se muito perigoso denunciar um criminoso perante à polícia, sob risco de o fazer perante o seu comparsa ou o seu próprio chefe, a comandar as operações a partir de dentro da polícia. Esses malfeitores usam a farda e os meios comprados com o suor dos moçambicanos ao serviço da criminalidade.

Aliás, a demissão da ministra do Interior levanta um outro debate: a questão da dualidade de critérios. É que a situação no Ministério do Interior não me parece mais grave do que o problema dos livros escolares, cujos conteúdos, errados, comprometem uma geração inteira de crianças.

Ainda assim, a ministra do pelouro da Educação e Desenvolvimento Humano, Carmelita Namashulua, está de pedra e cal. É que se é para falarmos de “peixe miúdo”, também em relação a este caso foram sacrificados os pequenos, pois os “mandantes” continuam, até hoje, bem protegidos. Não vimos nenhuma editora ou um funcionário do topo, em toda a cadeia de produção do livro escolar, a ser responsabilizado pelo escândalo. O Chefe de Estado é soberano na sua tomada de decisões, mas, numa situação destas, dá a entender que no governo há filhos e enteados.

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