Biko e a “Black Consciousness” que ficou por ser entendida

OPINIÃO

Estêvão Chavisso 

 

Steve Biko, morto, por acaso, em Setembro de 1977, acreditava que a mudança de África só seria possível se os próprios negros se tornassem “agentes de mudança”.  Biko é considerado o pioneiro da “Black Consciousness” na África do Sul, posição que lhe é atribuída em resultado do seu percurso na luta contra as atrocidades do regime segregacionista do “Apartheid”.

 

É verdade que os pressupostos do “Black Consciousness” já corriam pelos quatro cantos do mundo. Narrativas de uma reivindicação negra na luta pelo reconhecimento já ecoavam no mundo vindas das Américas, seja no “antagonismo sincronizado” de Luther King e Malcolm X nos Estados Unidos ou no histórico percurso de Zumbi dos Palmares, morto em 1695 no Brasil.

 

A ideia de uma “consciência negra” já corria o Mundo quando a liberdade começou a ganhar forma nos países africanos, acelerada pela barbaridade de um modelo de ocupação efectiva que a maior parte das potências coloniais europeias escolheu.

 

Desde as carnificinas dos alemães na Namíbia, classificados como os primeiros actos de genocídio no século XX, passando pelas atrocidades de Leopoldo II no Congo até à barbárie do regime colonial português nos massacres de Mueda (1960) e de Wiriyamu (1972) em Moçambique.

 

Estes episódios e tantos outros em solo africano aceleraram o sentido de revolta que já ganhava mais espaço no continente, num contexto em que as duas principais potências mundiais, cada uma com o seu próprio interesse, estavam alinhadas com os pressupostos da libertação dos futuros países africanos.

 

Mas a base desta “revolta” que desaguaria na libertação a partir dos anos 60 tinha como fundamento elementar um pseudo-nacionalismo, principalmente nos movimentos de libertação apoiados pelo bloco do Leste.

 

A chama que guiava a contra-ofensiva africana não era fundada puramente nos pressupostos da verdadeira “Black Consciousness”, que pressupõe autoconsciência de nós mesmos, nos nossos conhecimentos e nos nossos valores, num universo plural.

 

Estava claro que era preciso travar a barbárie colonial no jovem continente, mas a visão dispersa sobre os motivos da luta afastava a possibilidade de um fundamento unânime. O que os africanos realmente reivindicavam?  Sua dignidade, independência ou um espaço junto à mesa? 

 

Na “Pedagogia do Oprimido” de 1968, Paulo Freire, com fortes influências de Frantz Fanon, já alertava para os riscos de o “oprimido”, que deseja ser livre, passar a acreditar que, para tal, ela ou ele deva se tornar o “opressor”. No final, isto foi o que aconteceu em parte considerável do jovem continente: a profecia “fenoniana” da “Pele negra, máscara branca”.

 

A falta da verdadeira noção dos pressupostos da “Black Consciousness” em África criou aquilo que Fenon chamou de “epidermização da inferioridade” até no continente de origem dos negros.

 

A interiorização de uma inferioridade associada à cor não foi realmente combatida após as independências dentro do próprio continente, deixando, no subconsciente, um complexo de inferioridade que se estende por gerações.

A descolonização foi incompleta, parece-me óbvio, tendo em conta que quem continua a definir os nossos modelos políticos e sociais é o antigo colonizador, que detêm os meios de produção e, principalmente, o capital. Para alguns, é uma tal de “neocolonização”, que se baseia principalmente na dependência financeira promovida por instituições ocidentais.

 

Para mim, o problema é endógeno e funda-se simplesmente na falta de uma verdadeira “Black Consciousness”, fundada no “awakening of self-worth” postulado por Biko: a compreensão dos negros sobre seu valor, dignidade, cultura e, principalmente, identidade, condições para apropriação dos nossos próprios destinos.

 

As convulsões sociais, incluindo aqui a avalanche dos golpes de Estado que marcam o continente nos últimos três anos, não só denunciam, primeiro, um “fracasso” do projecto africano assumido desde o pan-africanismo, mas, sobretudo, revelam que o modelo de “opressão colonial” continua, agora, entretanto, promovido pelos próprios negros, que outrora prometeram ao povo uma África melhor no calor de uma luta de revindicações dispersas.

 

Diferente do que aconteceu em Berlim em 1885, a divisão da África moderna hoje é feita pelas grandes instituições internacionais a partir do sinuoso mercado da dívida. Em 2022, a dívida externa (conhecida) total de África era estimada em 1,1 biliões de dólares, com previsões de aumento até 1,13 biliões de dólares em 2023. O engraçado destes números é pensar que, como Thomas Sankara alertou, “aqueles que nos emprestaram dinheiro são os mesmos que nos colonizaram”.

 

Por outro lado, as multinacionais voltaram ao continente para dar continuidade à delapidação dos recursos minerais, numa exploração já “autorizada” e em que os verdadeiros beneficiários são elites políticas, que somam milhares de dólares em contas pessoais distribuídas pelo mundo.

 

O povo, ontem convidado a lutar por uma ideia de independência, continua mergulhado na miséria. Apesar dos tímidos sinais de mudança que se vislumbram com envolvimento de uma camada jovem neste grito por mudança que gradualmente assalta o continente, a ignorância será sempre a nossa principal fraqueza e, enquanto continuarmos sem noção clara do real significado da “Black Consciousness” que Biko e tantos outros pensaram, a África continuará a ser abusada pelos próximos séculos.

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