Eu sou repórter

OPINIÃO

Estêvão Chavisso

Uma pasta de costas, duas camisetas e uma calça “jeans” é o máximo que levo comigo. O sol ainda se esconde, mas eu tenho já o pé na estrada. São, talvez, cinco horas até ao destino, num percurso de terra batida, entre pedras e poeira, algures no interior de um distrito do sul de Moçambique.

Na bagagem eu levo quase nada, senão um bloco de notas, uma caneta e um gravador, mas a cabeça está cheia de ideias para compor os dois mil caracteres que me serão exigidos, por vezes aos berros.

O destino exige quilómetros de estrada, mas a missão é específica e clara: é preciso encontrar aquele personagem que encaixe perfeitamente na ideia de texto que já, na verdade, concebi, vagamente. De cotovelo no vidro e olhar distante, num horizonte verde, penso no “deadline”, num ofício em que o autor é obrigado a estar todos os dias “inspirado”.

Sem compromissos, teoricamente, entrego-me, por completo, ao simples e puro entusiasmo de quem procura novos paradigmas, ciente, entretanto, da responsabilidade de quem assume a missão de contar as “dores” dos outros. Eu sou repórter e isso não é um título, é uma condição.

É uma vida de estrada e, por vezes, de solidão. Sou eu quem vive o paradoxo de escrever, por meses, um texto que só será genial no dia em que é publicado. Depois, não tem validade alguma. Eu sou repórter.

É um serviço público, mas, infelizmente, delicado, principalmente quando se vive numa sociedade de extremos como a nossa. É um martírio de quem quer exercer cidadania, contribuir para a nossa “noção de Estado” a partir de um jornalismo independente, mas, ao mesmo tempo, tem de “ver o que diz”, senão é associado a alguma “agenda”, sobretudo externa.

Sem convicções partidárias ou religiosas, minha consciência não se enquadra em qualquer agenda. Texto a texto ou frame a frame, meu exercício, que se quer simples, repousa na alegórica impressão de uma tal imparcialidade. Uma imparcialidade que, embora necessária e útil, exige uma visão epistemologicamente crítica na estética e no conteúdo.

De pés na terra e olhos no céu, continuo a acreditar no jornalismo como ferramenta para mudança, num universo múltiplo e que precisa de novas narrativas. É alegórico e ingénuo da minha parte, assim pensam muitos amigos meus, mas, para mim, é um caminho, neste início de um tal novo “Devir” que tanto precisamos.

Em cada personagem que vejo nos becos de Maputo ou em qualquer outro lugar deste vasto país, há uma história de tristeza e, em simultâneo, alegria. Há uma vida, vários sonhos e outras perspectivas que merecem ser contadas na conjuntura deste universo plural.

Desde a simplicidade do sorriso da dona Rosa, vendendo chá com uma chaleira amarada a um fogareiro no meio da azáfama de Xiquelene, a história do jovem soldado que vive entre as balas no dramático teatro operacional Norte até ao intrigante silêncio de Hermínio dos Santos Fernandes minutos antes de levar o Embraer 190 da LAM ao solo onde 33 pessoas morreram.

São todas histórias, versões, possibilidades e narrativas. São fragmentos que eu assumo a missão de os contar empacotados em alguns caracteres, na ambição de despertar algum sentimento em, pelo menos, um leitor, numa sociedade bombardeada, à velocidade da luz, por múltiplas informações – com consequências psicológicas.

Sem se esquivar da responsabilidade pedagógica, há em cada bloco de notas preenchido a ambição de moldar uma consciência a partir de histórias de vida. Minha “caneta” chora a história das prostitutas, dos marginais ou homossexuais, na tentativa de desconstruir esta visão separatista que se instalou.

Para os poucos que me lêem (dois ou três amigos), há quem acuse alguma “mudança”, mas há muito mais por ser feito neste exercício de “defesa” de um quarto poder livre, numa democracia ainda embrionária.

É um trabalho normalmente mal pago e, sobretudo, ingrato, principalmente quando admitimos que já não há mais jornais nas manhãs nos cafés de Maputo. Hoje, está tudo à distância de um “click” e ninguém mais lê jornais, também já não há colunas como as do Fernando Manuel.

Na luta por horizontes nunca navegados, há lucidez suficiente para saber que há ainda muitos quilómetros por fazer, de cotovelo no vidro ou pendurado na caixa aberta de uma Toyota qualquer a escutar promessas eleitorais. Há muito mais historias por serem contadas e eu  quero muitas mais personagens.

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