Difundindo a cultura moçambicana

OPINIÃO

Luca Bussotti

Enquando notícias péssimas estavam a chegar do Israel, em que uma nova frente de guerra acaba de se abrir, em Livorno, uma cidade litorânea da Toscana, província central da Itália, uma associação cultural local abriu as portas para receber o primeiro lançamento do livro “Manifesto: Por uma Terceira Via” de Nogenha e Castiano. O livro saiu em 2019, nas vésperas das eleições gerais e presidenciais de Moçambique, e os autores até foram acusados ou suspeitados de querer formar um novo partido para concorrer contra os mais tradicionais, ou de ambicionar a um cargo institucional importante depois daquelas eleições.

Nada disso aconteceu, nem os autores queriam que acontecesse, pois nunca foi objectivo deles se substituirem aos políticos e aos seus papéis, pois eles sempre procuraram despertar a consciência colectiva sobre temas e assuntos de interesse geral, com visto o crescimento da consciência cívica dos moçambicanos. E este livro não fez excepção, como os factos posteriores à sua publicação têm demonstrado.

Por isso é que duas ONG italianas, Ciscam e TimeforAfrica, resolveram traduzir o livro naquela língua, acrescentando notas explicativas, com um prefácio da investigadora Laura António Nhaueleque e um comentário final de quem escreve, situando assim o público italiano em mérito a questões moçambicanas e, mais no geral, africanas. O livro acaba de ser publicado pela Tipografia Editrice Pisana, uma editora com sede na cidade de Pisa, também na província da Toscana.

O debate que acompanhou este primeiro lançamento da obra traduzida de Ngoenha e Castiano foi muito rico, e deu uma ideia de pelo menos duas questões: por um lado, uma grande curiosidade acompanhada por um conhecimento mínimo de Moçambique por parte de um público que certamente não era composto por pessoas quaisquer. Entre elas, professores universitários, activistas sociais, profissionais interessados com questões africanas e afro-europeias. Esta falta de conhecimento, que em muitos casos terminava com uma vaga recordação do Moçambique socialista  da época de Samora Machel, representa uma característica bastante comum no público italiano para com questões africanas, facto que demonstra a necessidade de investir mais sobre iniciastivas desta natureza. Por outro lado, o paradigma interpretativo de cunho geopolítico que a maioria dos presentes procurou destacar para compreender a história, a actualidade e, se for o caso, as perspectivas de um país como Moçambique.

Foi sobretudo este último aspecto a chamar a minha atenção. Com efeito, os dois oradores principais presentes no evento, o autor Severino Ngoenha e o tradutor e cuidador da obra, eu próprio, coordenados por Gianfranco Giovannone, da TV Ciscam, tiveram de usar todas as suas capacidades argumentativas para fazer com que a rica discussão se focasse sobre Moçambique e as suas questões e dinâmicas internas, mais do que sobre elementos de geopolítica, que continuavam a ser levantados. O debate parecia focar-se mais sobre os interesses da China, da Itália, ou de Portugal ou Brasil em África do que sobre as próprias questões internas ao continente e a Moçambique de forma específica. Não que a geopolítica não seja importante e influente no seio dos cenários moçambicanos e africanos, entretanto – pelo menos no debate italiano – a tendência é de reduzir escolhas e opções internas a um jogo de xadrez da grande política internacional. Assim, os golpes de estado no Sahel são reduzidos a uma mera disputa entre França, Rússia e talvez China, a história de Moçambique a um simples reflexo de relações internacionais entre as grandes potências mundiais durante e depois da guerra fria…em suma, tudo giraria a volta de cenários geopolíticos em que os actores locais, incluindo Moçambique, são sujeitos passivos e executores da vontade e dos conflitos dos países centrais do sistema.

Ora, esta interpretação, largamente maioritária mesmo na academia italiana, retira qualquer protagonismo às entidades locais. Como é óbvio, um país como Moçambique, ou como qualquer outro país africano, não tem nenhuma voz sobre, por exemplo, as dinâmicas macro-económicas internacionais; assim como não tem voz sobre a situação geopolítica mundial. Entretanto, existe uma esfera de competência própria de Moçambique – como de todos os estados africanos – em que a soberania nacional é exercida, praticada e disputada internamente entre os diferentes actores sociais e políticos. Como ela está sendo exercida é questão de debate, mas o que aqui se pretende afirmar é que a discussão a volta do Manifesto do Ngoenha e Castiano colocou no centro das reflexões a necessidade de enaltecer os elementos locais para fazer com que as forças mais vivas da sociedade moçambicana possam reflectir sobre o seu passado, para traçar um futuro possível, de maior justiça social e de mais respeito para as liberdades individuais. Em suma, ao longo deste debate foi o paradigma interpretativo da maioria dos presentes a ser questionados por parte dos oradores, o que significa que, pelo menos no contexto italiano, mas provavelmente em larga parte do contexto ocidental, deveria ser uma tal mudança a constituir o cerne do debate sobre África e suas dinâmicas e mudanças.

Tudo isto me levou a concluir que, a partir da academia africana, é necessário ter mais estudos sobre as dinâmicas locais – sejam elas políticas, sociais, culturais, económicas – e uma maior difusão delas mesmo entre o público do hemisfério Norte. Com efeito, o conhecimento de tais dinâmicas é elemento fundamental não apenas para fazer uma ostentação de sabedoria, mas sim para realçar que os países africanos também têm suas peculiaridades e autonomia, e que o relacionamento com eles, por parte dos países do Norte do mundo, terá de ser baseado sobre tais características. Por isso a divulgação de obras como a de Ngoenha e Castiano fora dos respectivos países e universos linguísticos representa um momento fulcral para voltar a devolver dignidade ética e intelectual ao continente africano, que não pode ser reduzido a mero receptor das disputas entre as maiores potências internacionais, desempenhando um papel passivo e sem nenhuma subjectividade própria.

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