O povo se vingou nas urnas e a Frelimo arrancou

EDITORIAL

Até esta segunda-feira, os resultados das sextas eleições divulgados pelas Comissões Distritais e Provinciais de Eleições indicavam para uma improvável vitória da Frelimo em 64 das 65 autarquias, deixando somente a Beira para o MDM, enquanto a Renamo era o mais penalizado, sem nenhuma autarquia. E porque há provas de fraude e várias irregularidades, em todas as autárquicas surgiram vários movimentos contestatórios, criando uma situação de incerteza política, que pode ser marcada por convulsões sociais e conflitos pós-eleitorais. Os mais incisivos acreditam que interessa ao “nyusismo” aproveitar-se de um provável conflito e caos generalizado para se manter no poder depois de fracassadas supostas vias constitucionais para um terceiro mandato. Parece radical demais, mas arrancar tudo à Renamo, num ano em que teve maior aceitação popular, foi esticar demais a corda, e leva-nos a acreditar nessa possibilidade.

O facto é que aos 30 anos da jovem democracia moçambicana, o sistema eleitoral regride a cada eleição para níveis inaceitáveis. Nas eleições desta quarta-feira, os resultados foram congelados em municípios onde a Renamo reivindica vitória e generalizou-se a percepção de que os seus actores (STAE/CNE) estavam numa mera gincana de fabricação de resultados eleitorais, havendo, até, relatos de casos em que foram ignorados editais e actas originais produzidos nas mesas de votação e validou-se os resultados com base em duplicados produzidos à calada da madrugada e com números completamente diferentes. É o caso de Maputo e Matola, onde os resultados das mesas foram completamente alterados, situação que está a gerar tensões, havendo risco real de um levantamento social.

Os episódios que ilustram a fraude chegam a ser irónicos: desde violência, a recusa dos presidentes dos MMV em assinar actas antes de uma suposta ordem; ordens para os membros irem dormir em casa antes de entregar editais; milhares de urnas pré-votados a ponto de superarem os eleitores inscritos (chegou a parecer um festival de boletins pré-votados), entres outros.

A fraude e desorganização foram tão normalizadas que até onde a Frelimo ganhou legitimamente existem receios de que tenha sido de forma injusta, facto que para a ala mais conservadora constitui um sério problema interno. A aparente vitória da Renamo em cidades como Maputo e Matola, num contexto em que, curiosamente, a principal oposição não mostra ser alternativa, é histórica e fragiliza a liderança de Filipe Nyusi, que consciente desta realidade, num momento em que está na porta da saída, tenta recorrer ao último recurso para salvaguardar a sua honra, manipulando o processo e descredibilizando-o. É que seria muito azar junto para o nyusismo: sem legado na governação e mancha na gestão do partido. Mas sucede que ao tentar reverter os resultados, manipulando a escolha dos eleitores, num voto de de vingança, alerta e repúdio à postura arrogante e até irresponsável do Governo e o partido que o suporta e não de apoio à oposição, coloca o país numa situação de incerteza política e retrocesso institucional ao colocar governantes sem legitimidade de representação e, a Frelimo, numa situação sensível para as eleições de 2024.

Até aqui a postura prepotente e arrogante do Governo da Frelimo, institucionalização da corrupção com fortes indícios de arrastar até o próprio Presidente, a banalização das instituições e a degradação dos serviços sociais básicos (saúde, educação, transporte), o fracasso de quase todas iniciativas presidenciais e as respectivas reformas, o descalabro da TSU e das demais políticas concorreram para um maior fosso entre a Frelimo e o eleitorado. E tem um ano, se não menos, para se aproximar do povo e mostrar que, de facto, tem o seu poder enraizado no povo que, decepcionado, direcionou de forma punitiva o seu voto à oposição. Estamos a falar de um contexto de mudanças demográficas profundas, com um eleitorado mais jovem, que não tem dívida histórica com a Frelimo e depende do desempenho do seu governo para apoiar ou reprovar através de voto.

Um voto punitivo, de aceitação de um estranho no lugar do conhecido, é um forte símbolo de rejeição, e não pode compensar qualquer vitória, principalmente quando a mesma vitória tem o perfume daquela que pode ter sido a pior fraude da história, pelo que a Frelimo perdeu e, mesmo sem agenda e sem ser a grande alternativa, a Renamo ganhou.

Facebook Comments