Uma paz cada vez mais difícil

OPINIÃO

Luca Bussotti

Não há muitos comentários a fazer acerca das eleições autárquicas de 11 de Outubro passado. Um pouco todo o cenário estava previsto: um recenseamento com muitas irregularidades, a afirmação em várias cidades, incluindo Maputo e Matola, das oposições, a manipulação – desta vez particularmente grosseira – dos resultados eleitorais saídos das urnas. E o silêncio de vários atores políticos, a começar pelos parceiros internacionais, que nada comentaram, até hoje, de um processo cheio de vícios e que deveria, no mínimo, ser repetido, como aconteceu em países vizinhos, tais como no Quênia. Um silêncio que figuras destacadas da própria Frelimo procuraram quebrar, como é o caso do antigo presidente, Joaquim Chissano, sem efeitos palpáveis na concretude politica nacional.

Entretanto, existe uma base que antecede este cenário todo: o DDR, ou seja, a entrega das armas do lado da Renamo e a paralela desmobilização dos seus efetivos militares

Alas hoje provavelmente maioritárias dentro da Frelimo sempre apontaram para o fim da Renamo como objetivo político prioritário, tão que os últimos anos de Dhlakama foram caracterizados por tensões, conflitos e tentativas de reaproximação entre as partes que deixavam imaginar um futuro menos sombrio para Moçambique. Mas estas alas sempre foram presentes no seio do partido no poder, e assim o DDR, que em princípio deveria trazer mais paz e reconciliação, acabou sendo interpretado como oportunidade ímpar para esmagar definitivamente a principal oposição do país, a Renamo.

As eleições autárquicas foram tradicionalmente um momento de pluralismo e de competição eleitoral aberta para o país. Não que não tenha haviido situações críticas, do ponto de vista da transparência do processo eleitoral. É suficiente, aqui, recordar quanto aconteceu na Matola em 2018 com Muchanga, ou em Maputo em 2013 com Venâncio Mondlane, na altura candidato do MDM. Entretanto, cidades importantes foram conquistadas e governadas durante muitos anos pelas oposições, dando a impressão de que a via da governança local podia representar um elemento inovador na democracia moçambicana,  centralmente monopolizada pela Frelimo.

Não se tratava de um cenário ideal, em termos de competição democrática, mas ele podia representar um bom início para democratizar mais ao fundo o país. Este termo, “democratizar”, não significa necessariamente que as oposições ganhem, mas que possam competir em pé de igualdade com que desde 1975 governa o país, tendo processos eleitorais transparentes e justos.

Uma tal condição foi varrida com estas eleições autárquicas. Fora de qualquer especulação e análise política, elas foram as primeiras com uma Renamo desarmada e “normalizada”, e o resultado é visível e patente. Não será difícil imaginar como, em 2024, serão geridas as eleições gerais e presidências, além das provinciais.

Esta postura que pretende aniquilar as oposições para voltar a um regime de partido único já está a provocar descontentamento popular, com possíveis conflitos sociais e políticos em várias cidades que passaram por essas eleições, e com um movimento que poderá alastrar-se a todo o país. Num momento em que o mundo está para implodir, com duas guerras em cursos e outros conflitos “menores” a decorrer pelo planeta, inclusive o em Cabo Delgado, uma postura de responsabilidade por parte de quem sempre governou Moçambique era, e seria, expectável. A Ordem dos Advogados manifestou a sua preocupação neste sentido. Eliminar qualquer hipótese de a Frelimo ter oposições realmente capazes de concorrer do ponto de vista eleitoral significa incentivar conflitos e guerrilhas urbanas de que Moçambique certamente não precisa, ainda mais hoje, com um eleitorado cada vez mais consciente e maduro, comprometido e exigente.

A simples observação de quanto está a acontecer nos dias posteriores às autárquicas de 11 de Outubro indica que a manutenção não apenas dos princípios democráticos estabelecidos pela Constituição, mas da paz vai depender muito da postura dos atuais governantes. A escolha será entre tutelar o interesse nacional de todos os cidadãos moçambicanos, ou enveredar por um caminho de conflitos e atropelamento das normas, mergulhando o país numa nova época de instabilidade, e deixando entender que em Moçambique as únicas oposições credíveis são aquelas armadas. Se assim for, acabamos de assistir, mais uma vez, a um paradoxo todo moçambicano: o fim do longo conflito Governo-Renamo vai significar a abertura de novas tensões, ao invés que do início da paz…

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