Como sair deste imbróglio?

OPINIÃO

Luca Bussotti

Existem pelo menos dois factores que quem arrumou a mais escandalosa alteração da vontade popular em Moçambique num processo eleitoral não calculou devidamente: o primeiro diz respeito ao clima social mudado, que pode ser resumido com a ação levada a cabo por parte dos jovens que se autodefinem como pertencentes ao “Povo no Poder”. Em Março passado, quando, depois da morte de Azagaia, as forças policiais tiveram jogo relativamente fácil em reprimir as manifestações que este incipiente grupo procurou organizar, a luta parecia entre gato e rato, e assim, provavelmente, pensou-se que aquele movimento já tivesse sido derrotado. Os factos mostraram que este foi um erro gravísimo, e que o movimento, num processo de mimetismo político, conseguiu mobilizar massas principalmente juvenis, tendo um objectivo primário: o respeito da vontade popular dos eleitores e, em segundo lugar, o apoio às candidaturas dos principais partidos de oposição, principalmente a Renamo. Existem poucas dúvidas de que, sem o protagonismo destes jovens, Renamo, MDM e Nova Democracia, como principais partidos de oposição, teriam conseguido os resultados hoje visíveis a toda a gente, implementando formas de activismo e de resistência inimagináveis mesmo pouco antes das eleições.

O segundo erro foi a ideia da passividade do povo moçambicano. Uma passividade de que este povo já deu largas provas, por exemplo com elevados níveis de abstenção eleitoral em todas as eleições depois das duas primeiras gerais, de 1994 e de 1999. Entretanto, não foi calculado que as condições péssimas em que larga parte da população moçambicana vive até hoje, inclusivamente os funcionários públicos que ficam sem salários ou recebem-nos com muito atraso, e que sempre foram fieis à Frelimo, influenciaram o desejo de mudança que outrora tendia a expressar-se com a resignação.

Foram estes dois motivos, provavelmente, que não deixaram passar o esquema de fraude que, desde o recenseamento, o actual sistema de poder quis implementar, ignorando os princípios fundamentais de um estado de direito, que deveria reger mesmo a vida pública em Moçambique. Resultado: de forma espalhada, vários tribuais locais atribuiram a vitória ora à Frelimo (Quelimane ou Gurue), ora ao MDM (Beira), ora apontando pela necessidade de recontagem dos votos (Alguns distritos de Maputo e Matola). No entanto, nas ruas de muitas cidades, a população não se cansa de exigir o respeito da vontade popular, repondo a verdade eleitoral. E o número de manifestantes é tão grande que mesmo mecanismos de repressão old style ficaram impraticáveis.

Fora das análises que podem ser feitas, a questão que agora o país tem de enfrentar é a seguinte: como sair deste imbróglio? Será que alguém tem a autoridade suficiente poderá repor a verdade eleitoral? A resposta, provavelmente, é negativa. Foram tantas as alterações e adulterações na contagem dos votos que será muito difícil, senão impossível, estabelecer qual partido os eleitores moçambicanos mais votaram nesta ou naquela autarquia. Tal facto não deixa, portanto, muitas escolhas: seria necessário repetir as eleições em todas as 65 autarquias do país. Uma escolha, esta, que só poderá caber à Suprema Corte, e que implicará mais gastos, mais tensões, e um país de facto bloqueado entre uma eleição falhada (esta das autárquicas) e uma em devir (a de 2024, com eleições gerais, presidenciais e provinciais), que se prevê ainda mais renhida e competitiva do que esta que acaba de acontecer.

Um segundo problema diz respeito a como, eventualmente, o país irá enfrentar esta repetição das eleições (de forma total ou parcial, ou seja, apenas para alguns municípios): o que sobressaiu deste processo eleitoral é que a maioria das instituições que deveriam garantir a transparência do processo eleitoral já perderam qualquer credibilidade. Isso significa que, numa segunda eleição das autárquicas, o cenário que acabamos de viver poderá vir a se repetir, com conseguências nefastas, como os próprios bispos da Igreja Católica evidenciaram num recente pronunciamento. Não será suficiente, portanto, repetir as eleições, mas sim encontrar uma forma certa para garantir a transparência do processo eleitoral. Como fazer isso é questão jurídica, mas sobretudo política. E as dúvidas de como a política saberá responder a um tal dilema são mais do que legítimas.

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