A nova importância do Local

OPINIÃO

Luca Bussotti

Para quem conhece a história política de Moçambique só pode provocar admiração a luta que se desencadeou logo após as eleições autárquicas de 11 de Outubro passado.

Não existe nenhuma formação política de peso – salvo o MDM, que surgiu depois de Daviz Simango ter formado, em 2008, uma lista cívica que ganhou na Beira contra a Frelimo e a Renamo – que historicamente atribui relevância a dimensão local e, consequentemente, às eleições municipais

A cultura da primeira Frelimo era fortemente centralizadora, tão que Samora Machel divulgou o lema de “matar a tribo para formar a nação”, impedindo o uso das línguas locais e controlando expressões culturais típicas das várias etnias no país, conotadas como resíduos tradicionais e, portanto, fora do seu programa modernizador de inspiração iluminista (e marxista).

Da mesma forma, a Renamo nunca atribuiu importância à dimensão local: Dhlakama tinha um programa de cunho nacional, que visava introduzir a democracia num país na altura monopartidário. Seu objectivo último era substituir o poder da Frelimo, muito mais do que idealizar um pacto constitucional diferente entre governados e governantes. A confirmação disso reside no facto de que a Constituição da viragem foi aprovada em 1990 por um parlamento ainda monopartidário, mas que a Renamo nunca a questionou, a partir da elevada centralização institucional, dos poderes do presidente da República, e da incerta separação dos poderes entre os vários órgãos do Estado.

Em 1998 a Renamo boicotou as primeiras eleições autárquicas, deixando a Frelimo o controlo de todos os municípios do país. A palavra “federalismo” era um tabu no debate político moçambicano, mesmo do lado da Renamo.

Diante dessas premissas, o sentimento de admiração com relação ao que está a acontecer depois do dia 11 de Outubro não pode ser evidente, e dificilmente explicável com a lógica política “tradicional”.

Não resta dúvida de que o elemento novo que emergiu foi a formação do Povo no Poder no cenário político de Moçambique, depois da morte do Azagaia, em março deste ano. Um elemento que colheu de surpresa não apenas o partido-Estado Frelimo, mas a própria Renamo, que na prática “delegou” a relação com esta hoje influente rede de jovens a figuras locais de destaque, tais como Venâncio Mondlane, Manuel de Araújo e outros. Entretanto, a cultura centralizadora e conservadora do grupo dirigente nacional da Renamo parece ter pouquíssimas relações e escassa compreensão dos elementos de inovação e radicalismo político trazidos pelo Povo no Poder.

Seja como for, a vitória da Renamo em várias cidades parece um dado adquirido, pelo menos considerando as contagens paralelas dos votos, assim como outras contagens a nível local. Porque, então, a Frelimo tem assim tantas dificuldades em admitir a sua derrota à escala local, que não tem influência directa na vida do governo central? Dificuldades evidenciadas e criticadas por membros influentes do próprio partido, desde Chissano até Graça Machel, desde Samito até Lourenço do Rosário, só para citar alguns deles.

A resposta a esta questão deve ser encontrada, provavelmente, na perspectiva das lutas internas a Frelimo, principalmente em vista das próximas eleições presidenciais. Um partido cujo grupo dirigente entregasse cidades do sul como Maputo, Matola, Vilankulos, além das muitas outras do centro e do norte, seria conotado como um grupo que faliu, e que levou o partido a uma situação de impopularidade tal de arriscar de perder as presidenciais de 2024. Pelo contrário, conceder apenas a vitória na Beira ao MDM representaria um sucesso, se comparado com os resultados das autárquicas anteriores.

As duas perspectivas significariam, no primeiro caso, a necessidade de mudar radicalmente a escolha do ou da candidata presidencial, e no segundo uma linha de continuidade com a actual liderança do partido. No meio desta escolha é possível encontrar interesses, gestão do poder, distribuição de cargos e muito mais que uma ou a outra parte poderá realizar a partir de 2024, provavelmente em detrimento da outra.

Se este é o cenário que incentivou o mecanismo da recusa, por parte do actual grupo dirigente da Frelimo, em deixar a Renamo governar naquelas cidades onde parece que ganhou, a consequência desta disputa vai muito além da simples luta intestina entre grupos internos ao partido no poder. Tal luta está a afectar o funcionamento e a credibilidade das instituições públicas. As declarações de Fernando Mazanga com relação a CNE central demonstram este sentimento de alienação dos próprios membros de tais organismos com relação ao seu funcionamento e imparcialidade.

Projectar numa esfera nacional as lutas internas a um partido, prejudicando o correcto funcionamento do país significa pensar que ainda existe uma sobreposição entre partido e instituições, ao passo que tal distinção já deveria estar clara desde a Constituição de 1990 e suas posteriores alterações.

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