Desafio do resgate da verdade eleitoral

OPINIÃO

Alexandre Chiure

A Comissão Nacional de Eleições CNE) surpreendeu-me na negativa com a recente divulgação dos resultados nacionais das sextas eleições autárquicas. Pensei que fosse a levar mais tempo para se pronunciar, tendo em conta o volume das irregularidades e ilícitos eleitorais registados ao longo da contagem dos votos junto das assembleias e do apuramento intermédio.

Ao que parece, preocupou-se mais em cumprir com os prazos estabelecidos por lei para ficar bem na fotografia, nesse aspecto, do que propriamente avaliar profundamente o dossier e procurar formas de acomodar ou resolver os conflitos eleitorais existentes e conferir credibilidade a todo o processo eleitoral.

O que a CNE fez foi passar por cima de todos os problemas levantados pela oposição, nomeadamente a Renamo, o MDM e Nova Democracia. Partidos que coincidem, nas suas queixas, na questão de que se operou, neste sufrágio, em alguns municípios, sobretudo os mais disputados que os restantes, como sejam Maputo, Matola, Quelimane, Nampula e outros, uma fraude em grande escala.

Não se assustou sequer com os factos provados em tribunal sobre fraude eleitoral. O caso de um director distrital do STAE que levou consigo para aquela instância de justiça 43 editais, 42 dos quais falsos. A confissão deste de que recebeu 500 mil meticais para viciar os resultados a favor do partido no poder.

Nem tão pouco chamou atenção à CNE a circulação de editais cujos assinantes não existem e preenchidos com canetas diferentes das usadas nas assembleias de voto, para além de exibirem referências não oficiais.

Não levou em conta denúncias de enchimento de votos apresentadas por alguns partidos políticos na oposição. Em Nampula, por exemplo, reporta-se que o número de votos foi superior ao dos eleitores inscritos, facto que ninguém se dignou a investigar, apesar de ser um grave ilícito eleitoral. Nem a Procuradoria Geral da República, nem os próprios órgãos eleitorais interessaram-se pelo assunto. É como se nada tivesse acontecido, o que é lamentável.

A CNE ignorou por completo queixas de alguns partidos políticos sobre a invasão das mesas de assembleias de voto por parte de que agentes da PRM em Gurue, na Zambézia e detenção de representantes da oposição, em particular da Nova Democracia, e perseguição de outros até às suas casas, sem explicação nenhuma.

Dá a entender que preferiu passar por cima de tudo ou abordar algumas questões ao de leve. Cingiu-se nos recursos submetidos ao Conselho Constitucional pela Renamo, MDM e, estranhamente, por algumas comissões distritais de eleições, chumbados, abrindo espaço para fazer a sua parte que foi a divulgação dos resultados.

Ficou estranho o processo de votação a que foi sujeito o dossier de apuramento intermédio, recebido dos distritos municipais. Primeiro, é o presidente da CNE, Dom Carlos Matsinhe, que resolve não se posicionar no voto. Absteve-se, o que espantou todo o mundo e como se isso não bastasse não assinou a acta de apuramento nacional, feito na base de editais cujo conteúdo é, em alguns casos, duvidoso.

A segunda coisa estranha é que a Renamo facilitou a vida da Frelimo. Teve uma grande oportunidade de lutar para que a CNE chumbasse os resultados através de lobbies, mobilizando os sete representantes da sociedade civil, de um total de 17 membros que compõem o órgão, a votar com a Renamo que tem quatro membros, cinco da Frelimo e um do MDM, dos dez que vêm do parlamento.

No lugar de investir neste acto, dois vogais da Renamo estiveram ausentes no momento crucial da votação, um dos quais o vice-presidente da CNE pela “perdiz”, Fernando Mazanga, que abandonou a sala onde estavam reunidos por volta das 17:00 horas de quarta-feira passada e regressou pouco depois das 5:00 horas da manhã do dia seguinte, o da divulgação dos resultados, quando já se tinha votado. O expediente passou com oito votos a favor, da Frelimo, contra cinco, da Renamo.

Onde podiam ter faltado porque não era muito importante que estivessem presentes, não faltaram. Quer Mazanga, quer o outro vogal marcaram presença no Centro de Conferências Joaquim Chissano onde foram tornados públicos os resultados. O facto alimenta especulações de que tenham sido pagos para não comparecerem no momento decisivo.

Com a votação, a CNE colocou um selo branco ao apuramento distrital, inquinado de irregularidades, recebido das comissões distritais de eleições, que proclama a Frelimo como vencedor em 64 dos 65 municípios em concurso. A Renamo, que governava em nove autarquias, não ganhou em nenhuma e o MDM, na Beira.

O presidente da CNE, Dom Carlos Matsinhe, prometeu, no acto da tomada de posse, que a sua missão era resgatar o bom nome dos órgãos eleitorais e a credibilidade dos processos eleitorais moçambicanos. Não é nada disso que estamos a acompanhar. Ao invés de melhorar, a imagem da CNE e do STAE piorou. Ambos bateram no fundo do poço.

Na prática, o que se viu foi a transferência de todas as responsabilidades pela decisão por parte da CNE ao Conselho Constitucional, a quem caberá anular actos eleitorais em alguns municípios, ordenar a recontagem dos votos noutras autarquias ou manter as coisas como estão se achar que está tudo bem.

O CC tem aqui a grande oportunidade, primeiro, de provar ao mundo, em geral, e aos moçambicanos, em particular, a sua independência em relação ao poder político. Segundo, dependendo da decisão a tomar, o Constitucional pode ou não salvar estas eleições. Conferir-lhes ou não a credibilidade. Resgatar ou não a imagem dos órgãos de administração da justiça beliscada ao serem conotados com o regime do dia.

Todos estão de olho no Conselho Constitucional. Os partidos políticos, organizações da sociedade civil, jornalistas, observadores nacionais e internacionais. Vejam o que fazem senhores juízes-conselheiros do CC. Não se metam no jogo dos políticos. Não prestem atenção apenas em questões de forma e legais, mas, também, no mérito do assunto.

Seja qual for a decisão a tomar, o que importa é que a verdade eleitoral esteja patente. Por outras palavras fica aqui o apelo no sentido de respeitar a vontade dos moçambicanos. Esse é o sentimento dos Bispos Católicos, do Conselho Anglicano, do ex-Juiz-Conselheiro do Conselho Constitucional, Teodato Hunguana, na sua carta intitulada “Dar a César o que é de César”, de Samora Machel Júnior, do filho de Jorge Rebelo e de milhares de moçambicanos que entendem que os resultados eleitorais anunciados na semana passada pela CNE passam ao lado dessa vontade popular.

Facebook Comments