As ambiguidades de um Estado laico

OPINIÃO

Luca Bussotti

Um dos fundamentos do Estado moderno é a separação dos poderes. O outro, até anterior a este primeiro, é a laicidade do Estado. O que significa garantir liberdade e autonomia a cada cidadão de adeir e praticar (ou de não aderir e nem praticar) qualquer tipo de culto religioso. Em suma, o ideal da tolerância, típico das democracias modernas.

Pelo menois desde o século XVIII, no Ocidente, a laicidade do Estado tem-se afirmado como o relacionamento normal entre igrejas e poder político. Inicialmente houve várias resistências, por parte da Igreja Católica, em aceitar este princípio. Desde a Revolução francesa até as disputas sobre Roma e os territórios circunvizinhos na Itália, a questão nunca foi simples, nem pacífica.  Na Itália do século XIX, quando, em 1870, as tropas do jovem Estado italiano ocuparam e tomaram posse da cidade eterna (Roma), a Igreja Católica respondeu com o non expedit, ou seja, a proibição, por parte dos católicos italianos, em participar das eleições políticas naquele país, considerado o protagonista de uma afronta sem precedentes à Igreja Católica. Entretanto, muitos anos depois, Papa Montini (Paulo VI) classificou aquele evento como “providencial”, pois levantou a Igreja de qualquer responsabilidade de gestão política, obrigando-a a concentrar-se em questões espirituais.

Com a guerra fria, a Igreja Católica, pelo menos nas suas altas hierarquias, sempre foi ao lado dos partidos moderados que se opunham à ascensão das formações socialistas e comunistas presentes em todos os países europeus, França e Itália em particular, invocando a “unidade política dos católicos”. Uma postura, esta, que descredibilizou a igreja diante de muitos crentes, e que cessou depois da queda do Muro de Berlin e do fim do comunismo soviético. Hoje, a Igreja Católica procura evitar entrar em assuntos políticos específicos, limitando-se a invocar a paz no mundo, a justiça e o fim das violências. Ela faz isso em todos os continentes, inclusive em países como Angola e Moçambique, onde as respectivas Conferencias Episcopais nacionais fizeram intervenções em vários momentos da vida pública, de frequente apelando para que paz, justiça social e reconciliação caracterizassem a actuação dos governos daqueles países. Organizações de outras confissões religiosas, quer cristãs, quer islâmicas, fizeram o mesmo, evitando misturas com este ou aquele partido, principalmente nos últimos anos, depois do fim do conflito civil em 1992.

Depois da virgem de 1990 com a nova Constituição moçambicana, todas as religiões foram admitidas, iniciando assim uma trajectória de relacionamento complexo, diferente daquilo que tinha acontecido durante a conflituosa época socialista. Aliás, os próprios dirigentes da Frelimo, outrora mentores do ateismo de Estado, revelaram – quase todos eles – a sua pertença religiosa, fomentando, portanto, a difusão de cultos, quer cristãos, quer islâmicos, quer de formas africanas de religião, em todos o país. A nova Constituição deixa clara a liberdade de um indivíduo aderir (ou não aderir) a um certo credo religioso, instaurando assim um relacionamento de mútua autonomia entre política e religião. Tal autonomia serve para garantir a credibilidade mútua entre Estado e religiões, de forma que, se houver uma crise numa das principais confissões religiosas, ou se houver problemas a nível institucional no Estado, eles ficam circunscritos, não envolvendo ao mesmo tempo os dois sub-sistemas, o religioso e o institucional, com o risco de um desmoronamento generalizado da sociedade moçambicana.

Entretanto, o princípio de mútua autonomia foi rompido há muito tempo. A história das relações entre religião e Estado em Moçambique cruza os destinos da CNE, ou seja, do organismo mais importante e, em princípio, mais autónomo de regulamentação da vida pública do país.

Foi assim com Jamisse Taimo, pastor da Igreja Metodista, com Abdul Carimo, muçulmano, e agora com Carlos Matsinhe, da Igreja Anglicana. Todos eles foram indigitados formalmente pela sociedade civil, em nome de uma suposta independência do poder político e, portanto, de uma maior liberdade em julgar processos complicados, como os de tipo eleitoral. A escolha, sem olhar pelas pessoas, foi a partida infeliz: de acordo com o princípio constitucional de independência da religião do Estado e vice-versa, não existe nenhuma razão de querer envolver religiosos em questões políticas de forma directa, até de tipo técnico. Acima de tudo, não se vê que tipo de competência possa ter um religioso na contagem de votos eleitorais (e em todos os procedimentos jurídicos subsequentes), com relação a um laico. Em segundo lugar, os presidentes “religiosos” da CNE nunca demonstraram capacidade de mediação e de equilíbrio superiores aos outros presidentes laicos, desde Mazula até Leopoldo da Costa. Como alguém poderá se lembrar, as eleições mais polémicas (salvo as últimas autárquicas de 11 de Outubro) foram as de 1999, quando o pastor Jamisse Taimo liderava a CNE, atribuindo uma até hoje duvidosa vitória à Frelimo e ao seu cndidato, Joaquim Chissano, nas eleições legislativas e presidenciais. O falecido presidente Abdul Carimo (o único licenciado em Direito, e director executivo do Observatório Eleitoral) também foi duramente contestado pelas oposições com relação às eleições de 2019, que se concluíram, na CNE, com uma votação dramática de 9 contra 8 em favor da aceitação dos resultados. Finalmente, Carlos Matsinhe está sendo até descrito e representado nas redes sociais moçambicanas com as roupagens de um diabo, que traiu a causa da verdade (neste caso eleitoral), em favor do partido no poder, ao passo que outro membro da CNE, o islâmico Daude Ibramogy, segundo as últimas informações, foi dispensado da liderança da mesquita do Aeroporto de Maputo, justamente para as mesmas razões.

Quanto acima dito demonstra factos dificilmente contestáveis: em primeiro lugar, a mistura de religião e política, principalmente em assuntos tão sensíveis como o relativo à matéria eleitoral, resulta deletéria, pois contradiz (se não do ponto de vista jurídico, na prática) o princípio constitucional de autonomia do poder espiritual do poder político. A única, provável razão de insistir em nomear religiosos para o cargo de presidente da CNE poderia assentar numa suposta superioridade moral dos mesmos. Os factos demonstraram que os presidentes “religiosos” da CNE actuaram exactamente como os “laicos”, portanto o motivo da sua integridade e superioridade moral cai diante das evidências. Em segundo lugar, eles no geral têm pouca ou nenhuma experiência na gestão de questões político-eleitorais: a sua nomeação, portanto, poderia induzir a pensar que eles foram escolhidos por serem facilmente influenciáveis e manipuláveis, o que seria ainda mais grave. Finalmente, as consequências de lideranças religiosas envolvidas no processo de contagem de votos deixa rastos terríveis nas próprias confissões religiosas. Foi assim na Igreja Metodista em 1999, está sendo assim na Igreja Anglicana e naquela Islâmica hoje, em 2023. Tais crises, principalmente as mais recentes, vão se somando à crise generalizada do Estado e da sua credibilidade, hoje fortemente minada, resultando num desmoronamento que está a deixar Moçambique desprovido de qualquer referência ética, além de institucional.

Como disse Paulo VI a propósito do fim do poder político da Igreja Católica, seria certamente um alívio, do lado das igrejas assim como da sociedade moçambicana no seu todo, deixar de nomear religiosos como membros da CNE…Se Cesar exige o que é de Cesar, Deus também pretende o mesmo…

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