Em três anos de operação, Kagame passou a controlar “todos” negócios de Palma

DESTAQUE POLÍTICA
  • Ruanda em ofensiva comercial para cobrir os custos de guerra?
  • Holding da RPF tem mais de 4 sucursais e empresas a operar dentro e fora de Afungi
  • Força Ruandesa foi distribuída pelos distritos onde o Ruanda tem interesses empresariais
  • “Estão a explorar esta relação pessoal com Nyusi para expandir os negócios” – João Feijó
  • Mandato do Ruanda continua nebulosa e seus militares intervém até em processos eleitorais

 

A solidariedade e apoio militar do Presidente de Ruanda, Paul Kagame, abriram espaço para uma nova ofensiva económica ruandesa em Cabo Delgado. Em três anos de operação, a principal holding da RPF, sigla inglesa do partido Frente Patriótica de Ruanda, a Crystal Ventures, através da Macefield Ventures, seu braço internacional, passou a controlar as principais linhas de negócio em Palma, ao assumir, através de sucursais e participadas, os principais negócios dentro e fora de Afungi. São empresas que entraram na construção civil, na segurança e com interesses na exploração de minerais. O Evidências confirmou que pelos menos quatro empresas deste grupo controlado pelo partido liderado por Paul Kagame estão a facturar milhões em contratos e subcontratos, em meio ao alarido do sector privado moçambicano, que depois de se sentir excluído no processo anterior aguarda agora pela retoma da TotalEnergies para correr atrás de oportunidade. Coincidentemente, as empresas de Kigali conseguiram negócios no mesmo perímetro cuja segurança é garantida pela força ruandesa. Ainda não está claro se essa conquista ruandesa é produto das relações entres os dois países ou de acordos secretos entre os presidentes de Moçambique e Ruanda, numa amizade apadrinhada pela França, através da TotalEnergies.

Nelson Mucandze

Três pick-ups adaptados para missões militares, de toyota Land Cruiser, modelo HZ, cabine única, sem matrícula, circulam a marcha lenta, num movimento rotineiro, pela principal rua da vila sede de Palma. Neles estão sentados quatro a seis militares com armas em punho, enquanto o que se encontra de pé se sustenta numa metralhadora abraçada ao carro que se suspeita que seja a versão moderna da DSK 12,7 mm. O movimento no mesmo sentido, na saída que segue em direcção a Afungi, chega a repetir-se duas vezes por hora.

De onde saíram as viaturas, na rotunda que separa a área do comércio e dos serviços do governo local, nas sombras das frondosas mangueiras que escondem o calor intenso que se faz sentir quando o sol está no centro, estão concentradas duas camionetas e uma dezena de militares fortemente armados, que na interpretação dos locais ilustram a prontidão das forças ruandesas.

O cortejo desaparece na grande movimentação de peões, entre comerciantes e os desempregados que pululam pelo mercado, enquanto é apreciado por um membro das Forças Armadas de Defesa de Moçambique, com a espingarda em punho, o uniforme denunciando desgaste, que caminha apressado como se estivesse perdido numa terra alheia.

À semelhança de Mocímboa da Praia, onde o Porto e Aeródromo são controlados pela força militar e polícia ruandesa, o preto dos toyotas Land Cruiser e as corres vivas dos uniformes dos militares e policias ruandeses é mais presente e militarmente ostentativo que o verde pálido das Forças de Defesa e Segurança. Na sede desse distrito, a Polícia da República de Moçambique funciona numa casa parcialmente coberta desde que foi destruída pelos terroristas aquando da ocupação de Mocímboa da praia em 2021, um cenário que contrasta com as condições da polícia ruandesa, que não partilha base com os seus conterrâneos que integram a força militar ruandesa.

Ofensiva da holding ruandesa atenua os custos de guerra

Ali destaca-se a presença da força militar ruandesa, com desempenho reconhecido, mas com motivações escondidas em acordos secretos ornados num discurso de solidariedade. Enquanto Moçambique, com o seu desempenho precário, gastou 1.7 bilhões de dólares no período compreendido entre 2018 e 2022, a ofensiva da holding ruandesa está a facturar milhões de euros em contratos directos ou subcontratos com a Total Energies e outros actores envolvidos na exploração de gás, o que indicia um esforço de cobrir os custos da guerra.

É que no decurso deste apoio militar nasceu o império empresarial ruandês, que se avolumou com o registo, a 11 de Fevereiro de 2022, da Macefield Ventures Mozambique, detida 99 % pela Macefield Ventures, braço internacional de Crystal Ventures, controlado pelo partido RPF, e 1% por Jean Paul Rutagarama, um nome presente em quase todos negócios da holding controlada pelo partido liderado por Paul Kagame.

Lê-se no Boletim da República que a Macefield Ventures Mozambique tem por objectivo principal o exercício das actividades de gestão de empresas e gestão de negócios, gerindo subsidiárias como a NDP, que é parte das empresas que procedem com as construções no interior de Afungi e a Isco Security, actuando na segurança no interior de Afungi, assumindo missões que, de acordo com autoridades ruandesas, não constam do mandato das forças policiais e militares daquele país, ou seja, complementar a missão destes especificamente nos projectos da TotalEnergies.

A Macefield Ventures Mozambique é accionista da Radarscape Mozambique, a construtora criada em Abril de 2022 e que no mesmo ano encaixou quase um milhão de dólares para reabilitação de casas na vila de reassentamento de Quitunda, próximo a Afungi. Mas aquela holding detém também a Strofinare Moçambique, uma empresa mineira reestruturada em Abril para ceder a participação da Macefield Ventures Mozambique, que passou a deter 90%.

Em acta da assembleia geral extraordinária, datada de 01 de Abril de 2022, a Strofinare Mozambique, Limitada, sociedade por quotas, foi reestruturada para que a sócia Strofinare Limited cedesse a totalidade da sua quota, no valor de 19 mil, correspondente a 90% do capital social, a favor da Macefield Ventures Mozambique, Limitada. Em virtude da cessão dessas quotas, as sócias deliberaram por unanimidade a alteração dos sócios e de capital social que de 20 mil passou para 10 milhões de meticais.

Curiosamente, a reestruturação da Strofinare Mozambique, que passa a pertencer à mesma holding que detém negócios em Palma, coincide com o aumento (de 1000 para 2500) e colocação das Forças Ruandesas no distrito de Ancuabe, no sul da província, onde a indústrias de rubi e grafite havia sido ameaçada pelos terroristas.

A partir da sua nova posição em Ancuabe, as forças de Ruanda realizam patrulhas regulares ao longo da rodovia EN14, cobrindo os distritos de Ancuabe, Montepuez e Balama. Os três distritos são, à semelhança de Palma e Mocímboa, ricos em recursos minerais, nomeadamente pedras preciosas e grafite, o que contrasta com a distribuição das forças da SAMIM, que para além de ter um acordo publicamente conhecido, actuam em zonas relativamente pobres em termos de exploração de recursos mineiros.

Negócios e ajuda para cobrir a solidariedade Ruanda?

Esta expansão comercial denuncia que, afinal, a ajuda ruandesa não é grátis e pode não estar exclusivamente dependente das relações triangulares entre os dois países e a França. Desde que Ruanda entrou em Cabo Delgado, empresas de Kigali começaram a operar em Palma, ganhando concursos na mesma flexibilidade com que foram criadas, curiosamente, no mesmo perímetro cuja segurança é garantida pela força ruandesa, distribuída pelos distritos de Mocímboa da Praia, Palma e Ancuabe.

O primeiro, que tem o seu Porto e Aeródromo controlados exclusivamente pelas forças Ruandesas, constitui o principal acesso ao distrito de Palma, que acolhe o investimento dos parceiros do projecto da Área 4 da Bacia do Rovuma, enquanto Ancuabe destaca-se pela abundância de grafite.

Já passam quase três anos que a TotalEnergies, líder do consórcio do projecto Mozambique LNG, suspendeu as actividades em Afungi alegando levantamento da “força maior” declarado na sequência da evolução da situação de segurança no norte de Cabo Delgado, o que culminou com a retirada de todo o pessoal de Afungi, local onde está a ser instalado o projecto.

De forma prática, a declaração de força maior não teve impacto directo nas actividades ligadas ao projecto Mozambique LNG, e isto permitiu a entrada destas e outras empresas, uma vez que decorrem obras da planta em Afungi.

A força maior levantada pela TotalEnergies foi marcada pela rescisão de empresas nacionais e sul-africanas que depois da interrupção das actividades não mais, na sua maioria, voltaram para Afungi, onde a TotalEnergies contratou as empresas ruandesas.

Solidariedade militar esconde interesses políticos

O investigador João Feijó não tem dúvidas de que a relação solidária entre Moçambique e Ruanda se insere num discurso que esconde interesses políticos e económicos por detrás.

“As relações internacionais foram marcadas por esta lógica de interesse”, observa, assegurando que a relação do Ruanda com Moçambique não constitui um modelo novo, apesar desta estar embrulhada com este discurso de solidariedade.

De acordo com Feijó, a questão que se coloca e que nunca foi respondida é quem está a financiar estas operações ruandesas, quanto tempo estas operações vão actuar em Moçambique, qual é o mandato, quais são os interesses que estão a ser protegidos e quem está a pagar por estes interesses estratégicos.

Aponta que as empresas ruandesas próximas da nomenclatura política do país são indicadas a operar no interior do acampamento de Afungi, seguidas de outros operadores ruandeses que vêm à boleia e começam a propor este interesse económico em Palma. “Sei que existem empresários ruandeses que estiveram à procura de terrenos em Palma para instalação de hotelaria, mas como em Palma já não há terrenos, eles tentam negociar com operadores moçambicanos, não sei se chegaram a um acordo”, anota, ilustrando a ofensiva empresarial ruandesa em Palma.

Mas não deixa de observar que esta é uma relação complexa, que pode envolver interesses ocidentais, visto que Ruanda pode ser este mensageiro da França, e porque não da europa. Há notícias de que a União Europeia entra com o Fundo Social Europeu para apoiar em projectos de saúde e educação, por outro lado é que os ruandeses são extremamente bem equipados, eles vêm bem equipados para Moçambique. É preciso ver as equipas, que relações existem com França, EUA (não sei se existem relações), e verificar até que ponto esses acordos não são contrapartidas para depois Ruanda realizar trabalhos de segurança em África para proteger interesses económicos europeus”, analisa, reiterando que “é uma hipótese que importa verificar se existe ou não”.

O investigador aponta que a sociedade civil de Maputo está preocupada com esta aproximação entre os dois países, uma vez que não é transparente, e por isso insiste na necessidade de se partilhar as contrapartidas, o tempo e o modelo do mandato, se “é uma relação institucional entre os dois países ou entre Presidentes. Até que ponto o Ruanda não pode também fazer favores pessoais ao Presidente, até que ponto Ruanda não vai interferir nas manifestações pós-eleitorais”.

Em Mocímboa da Praia, a oposição contestou o processo eleitoral e a força ruandesa reprimiu as manifestações alegando que o mandato deles não permitia agitação no seu perímetro de segurança.

Para Feijó, isto mexe com os direitos fundamentais. “Numa zona de conflito, a violação desses direitos fundamentais é muito mais provável, mas o Governo pode ali declarar o estádio de sítio, ou regular novamente a questão desses direitos, mas aqui a coisa está muito ambígua”.

Uma outra observação do investigador é que, curiosamente, a força ruandesa foi destacada para assegurar a segurança em zonas estratégicas em termos de distribuição dos próprios recursos. É que o perímetro de segurança de Ruanda cobre zonas estratégicas em termos de distribuição de recursos.

“São interesses extractivos internacionais, eles estão claramente a segurar as zonas onde estão os recursos minerais, que são extremamente importantes para estabilizar os preços da energia nos mercados internacionais. Então, o objectivo é garantir a extracção desses produtos e minimizar os níveis de insegurança estabilizando a segurança a volta da zona de extracção de recursos para poderem extrair”, aponta, afirmando que esta pode ser exigência do investidor, porque não confia nas forças armadas moçambicana, que não conseguiram provar em 2020 e 2021 que podem proteger estas infra-estruturas.

“Então, é preciso garantir um exército que garanta esta segurança. Como não pode ser americano e nem francês, importa arranjar um exército africano com alguma continuidade sociocultural com aquela população que faça esta guerra”, disse.

Enquanto Ruanda factura… empresariado nacional aguarda pela retoma da TotalEnergies

Num contexto em que não existe qualquer informação da retoma das empresas, em que o quadro de negócios é orientado por instrumentos ocultos, sem divulgação dos termos de compromissos da presença ruandesa, tanto a nível empresarial assim como operativo, em termos de apoio, o empresariado nacional vê-se incapacitado de emitir qualquer que seja a opinião sobre a sua representativa nos trabalhos em curso em Afungi, senão aguardar pela retoma oficial dos investidores da Bacia de Rovuma na Area 4, encabeçados pela TotalEnrgies.

 

O Presidente do Conselho Empresarial Provincial (CEP) em Cabo Delgado, Mamudo Irache, explica que a nível da província, antes da interrupção das actividades, privilegiava-se a contratação das empresas estrangeiras porque 80% das operações feitas dentro da plataforma não podiam ser conduzidas pelas empresas nacionais.

 

“Razão pela qual contratou-se empresas grandes que dominam aquelas matérias, e pequenos trabalhos é que são contratadas as nossas empresas, mas também tínhamos empresas que estavam encaixadas consoante o nível que tínhamos, porque na altura falava-se muito de certificação, e as nossas empresas não tinham a tal certificação”, refere.

 

Depois destas exigências, as empresas nacionais começaram a ir atrás da certificação. A Confederação das Associações Económicas (CTA) conseguiu, por exemplo, certificar, só a nível provincial, cerca de 25 empresas e já estão lá algumas a fazerem pequenas actividades de óleo e gás.

 

“Isso nos orgulha porque antes era difícil, mas agora temos pequenas empresas que fazem pequenas actividades, tanto na área logística ou mesmo nas pequenas considerações que ali estão, apesar de um e outro não conseguir chegar lá”, aponta Mamudo Irache.

 

Aquele representante do sector privado a nível provincial explica que, no momento, as empresas estão a antecipar, estando a instalar as suas infra-estruturas em Palma à espera do anúncio que provavelmente ocorra dentro do ano.

 

“Daí que poderemos saber quais são as empresas da província de Cabo Delgado que têm capacidade de fazer serviços, e creio que nessa nova retoma teremos empresários da província e nacionais com capacidades de prestar serviços”, afirma Irache.

 

Ruanda assume papel filantrópico e coloca seus militares mais próximos da comunidade

A grandeza do poderio bélico de Ruanda é inquestionável quando interpretada a partir das suas bases distribuídas pelo distrito de Palma. São bases fortificadas, com construções de betão, o que justifica o maior clima de segurança e quase nenhuma tentativa de entrada, diferentemente de outros distritos, um contraste quando as mesmas condições são comparadas com a realidade das forças nacionais, distribuídas em bases precárias e actualmente a reclamarem melhores condições alimentares e falta de subsídios prometidos.

 

Esta comparação mostra quem tem maior financiamento, embora não esteja clara a proveniência oficial dos fundos que equipa as forças ruandesas. No entanto, para além de prestar apoio militar com bases sofisticadas em diferentes pontos de Palma, Ruanda assume no meio social um papel filantrópico, distribuindo comida, confecionada ou não, e envolvendo-se em trabalhos de assistência social com recurso a meios próprios.

 

De acordo com Celestino Txumale, líder comunitário de Pundanhar, no distrito de Palma, a maior aceitação das Forças Ruandesas não está apenas relacionada ao desempenho no Teatro Operacional Norte, mas a sensibilidade demonstrada à comunidade na assistência social.

 

Desde que as mais de 34 famílias retomaram às suas casas, nunca receberam qualquer apoio do Governo, mas já se beneficiaram de assistência alimentar providenciada pela força ruandesa.

 

“Há dificuldades aqui, em primeiro lugar há fome; acabámos de chegar e as pessoas não têm machambas, porque mesmo os que chegaram em Dezembro não conseguiram cultivar grandes machambas”, para mais adiante sublinhar que “eles (os ruandeses) convocam-nos muitas vezes para nos darem alguma comida. Estamos muito gratos por isso. Arroz, xima e papas de aveia. Não sei as quantidades, porque eles preparam-nas e quando uma família vai, distribuem pouco a pouco. São eles que cozinham e as pessoas encontram as coisas preparadas”, disse o líder comunitário.

 

Fora do seu papel solidário, sua entrada nos negócios é notada por aqueles que buscam emprego, afinal o figurino das empresas desde a suspensão das actividades não é o mesmo.

José Santos, que trabalhou como um dos mestres das casas pré-fabricadas em Palma, ido de Maputo, retornou a Palma quando ouviu que as empresas tinham retomado os trabalhos de construção em Afungi, no entanto, para a sua surpresa, não são as empresas que eles esperavam que agora dominam os trabalhos.

“Os nativos de Cabo Delgado estavam muito atrasados em relação às indústrias. Agora, temos umas escolas que estão a vir formar os locais para serem pedreiros, serralheiros, pintores, para pelo menos ganharem estes anos, que vem como mestre também agora”, anota, observando que essa tendência de contratação dos locais pode ser quebrada depois de uma evolução que abria espaço para maior convívio.

 

* Reportagem produzida no âmbito do Programa para Fortalecimento do Jornalismo Investigativo com enfoque na Transparência e boa Governação Económica – REAJIR.

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