Vítimas de inundações não recebem ajuda humanitária há mais de quatro meses no Centro de Reassentamento em Boane

SOCIEDADE
  • Passam fome e não dormem nos dias de chuva
  • Loureiro insta famílias para serem pacientes enquanto aguardam pela chegada da ajuda humanitária

Eles foram vítimas da fúria da mãe natureza, perderam quase tudo nas enxurradas de Fevereiro do corrente ano e dependem da ajuda de terceiros para sobreviver, contudo, actualmente, para além da dor de ter visto a fúria da água destruir o que construíram na base de muitos anos de luta e sacrifício, debatem-se com a situação da fome, uma vez que estão há quatro meses sem receber ajuda humanitária do Governo e organizações não governamentais. Face à actual situação, os residentes do Centro de Reassentamento de Estevel fazem biscates (xitocos) nas machambas para conseguirem, no mínimo, uma refeição por dia. Por sua vez, o Executivo ao nível do Distrito de Boane deu a mão à palmatória quando instado a se pronunciar sobre a situação das vítimas das inundações, tendo igualmente reconhecido que não dispõe de fundos para assistir as vítimas.

Esneta Marrove

Na sequência das chuvas que caíram em Fevereiro do corrente ano, mais de 20 mil famílias foram reassentadas no Centro de Reassentamento de Estevel, no município de Boane. Algumas famílias já regressaram às suas zonas de origem, mas o grosso das mesmas continua a viver naquele centro transitório, pois perderam tudo.

Sucede, porém, que, actualmente, os agregados familiares que continuam no Centro de Reassentamento de Estevel debatem-se com a falta de alimentos, visto que estão há sensivelmente quatro meses sem receber a ajuda humanitária.

Alberto Aminosse, residente naquele centro de reassentamento e que viu a sua casa ser engolida pela água, disse que não tem outra opção senão continuar onde foi colocado pelo Governo porque não tem onde ir.

No entanto, Aminosse reclama das condições que hoje não tem. Segundo ele, o Executivo prometeu trazer mantimentos todos os meses, mas só teve por dois. Desde lá tem feito das tripas coração para conseguir se manter.

“Aqui não temos trabalho, nem dinheiro para nos deslocarmos a vila e fazer biscates. Dependemos da ajuda dos nativos para ter o que comer. É deveras difícil viver nestas condições, mas não temos outra alternativa a não ser continuar à espera de um milagre. Espero que esta mensagem chegue a quem de direito, porque se isto continuar assim, muitas pessoas vão morrer à fome”, declarou a fonte.

Antes das chuvas que a deixaram sem tecto, Cecilia Francisco tinha um negócio consolidado e conseguia sustentar a sua família, mas actualmente depende do trabalho nas machambas e da venda de badjias para colocar o pão na mesa.

“Tenho quatro bocas para alimentar e não posso confiar apenas na ajuda do Governo porque os meus filhos podem morrer à fome. Estamos há quatro meses sem receber ajuda humanitária, mas a vida continua. Faço biscates nas machambas dos nativos e por vezes vendo badjias para garantir, no mínimo, uma refeição por dia. Felizmente, nunca dormimos sem comer. Gostaria de ter uma casa digna e não uma tenda. Prometeram terrenos e até hoje continuamos aqui. Neste centro não há ricos, todos estamos na mesma situação. Espero que as condições melhorem para vivermos com dignidade, porque agora parecemos animais”, destacou.

Serviços sociais básicos são outro calcanhar de Aquiles

Outro grande desafio para essas famílias é a falta de serviços básicos, nomeadamente hospitais, escolas e água. No que respeita aos cuidados de saúde, os residentes do Centro de Acomodação de Estevel são obrigados a percorrer longas distâncias, uma vez que não há posto de saúde nas proximidades.

A falta de uma unidade sanitária nas proximidades daquele centro transitório semeou luto na família Honwana. Mira Honwana perdeu o marido hipertenso porque não tinha nenhum médico por perto para o assistir quando teve crise. Sem conseguir segurar as lágrimas dos olhos, a fonte lembra nostalgicamente o que aconteceu naquele fatídico dia.

“Eram 22 horas quando ele começou a passar mal, pedimos ajuda, e nada, só por volta das 00 horas conseguimos um carro que alugamos para nos levar ao hospital, mas já era tarde e meu marido perdeu a vida pelo caminho. Precisamos de um posto de saúde nas proximidades do Centro de Reassentamento porque se isso não acontecer muitas pessoas podem vir a perder a vida”, lamentou a viúva.

Para além de casos de doenças crónicas como a do senhor Honwana, a maior preocupação dos reassentados é com algumas mulheres grávidas e crianças que por questões óbvias demandam maiores cuidados com a saúde.

Escassez de água agudiza sofrimento dos reassentados

Uma outra mulher que preferiu não ser identificada viu-se obrigada a travar a progressão da sua filha nos estudos por falta de condições, uma vez que a criança gastava 70 meticais por dia para ir à escola, uma vez que no local apenas existe uma escola que lecciona até a 5ª classe.

“A minha filha almeja ser engenheira, mas nada posso fazer porque só para comer dependo dos outros, imagina ela ir à escola. O sonho só pode ser adiado para uma outra altura. Infelizmente, ela parou de estudar porque a escola fica muito longe do centro e não tenho dinheiro para custear as despesas de transporte. Espero que nos próximos tempos o Governo construa escola e hospital para aliviar o nosso sofrimento”, desabafou.

Quem também viu a distância a amputar o seu sonho é Laura Elias e Daniel Neves, adolescentes de 17 anos de idade, com sonhos de ser enfermeira e professor, mas tiveram que trocar os cadernos pela enxada por falta de condições para irem a escola, uma vez que o estabelecimento de ensino mais próximo dista a 30 quilômetros do Centro de Reassentamento de Estevel.

Em Setembro do ano em curso, foi inaugurado um furo de água no Centro de Reassentamento de Estevel. No entanto, o acesso ao precioso líquido continua a inquietar as famílias que ainda permanecem naquele centro transitório, visto que são obrigadas a pagar cinco meticais para encher um recipiente de 20 ou 25 litros.

Quem não dispõe dos valores para pagar pelo precioso líquido deve percorrer cerca de dois quilômetros para encontrar um poço em que não se cobra nada, mas água que sai da mesma não está tratada, o que de certa forma pode ser um atentado à saúde dos reassentados.

“Não temos dinheiro para comer, mas exigem cinco meticais para tirar água. No dia da inauguração não disseram que era para se pagar. Quem não tem dinheiro para tirar água aqui no centro deve percorrer longas distâncias para tirar no poço. Ninguém sonha em estar nesta situação, ninguém está feliz por estar aqui. Podemos não ter o que comer, mas pedimos que nos deixem tirar água sem cobranças”, referiu António Magaia.

Loureiro insta as família para se habituarem à fome enquanto aguardam pela chegada da ajuda humanitária

Outra situação que tira sono aos residentes do Centro de Reassentamento de Estevel é o estado das tendas que servem de abrigo. Segundo contaram algumas vítimas, nos dias de chuva não se dorme porque o grosso das tendas estão rasgadas

“Não conto as vezes que encontrei animais aqui, e quando chove toda água vai para dentro. Tentamos fechar com pedras para minimizar a situação, mas é em vão. Os que conseguem usam bambus e matope para construir um novo abrigo para si e sua família enquanto esperam pela reacção do Governo”, referiu a fonte.

Numa breve entrevista concedida ao Evidências, o presidente do Conselho Municipal de Boane, Joaquim Loureiro, disse que está ciente do drama vivido pelas famílias do Centro de Reassentamento de Estevel, mas apostou que actualmente não dispõe de fundo para aliviar o sofrimento dos mesmos.

Aliás, Loureiro insta as famílias a serem pacientes enquanto aguardam pela chegada da ajuda humanitária.

“O Governo faz o que pode, não levamos eles para estarem dependentes, não podemos estar a vida inteira a dar de comer ou levar médicos, isso não vai acontecer”, rematou.

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