São já quase 50 anos de uma agricultura que “não alimenta”

DESTAQUE SOCIEDADE
  • Acadêmicos concluem que o país continua a comer o que não produz
  • “Comparado a 1070, a área trabalhada pelos pequenos, médios e grandes produtores baixou” – João Mosca
  • “Existem vários problemas na direcção pública do sector agrário em Moçambique” – Castigo Langa
  • Instituições e políticas públicas incoerentes e mercados distorcidos prejudicam o sector

Quando a expectativa desde a independência em Moçambique era a transformação da agricultura moçambicana no motor do Desenvolvimento, depois de quase 50 anos, o que aconteceu foi exatamente o oposto. O cenário actual mostra que a agricultura está longe da transformação estrutural e do desenvolvimento com crescimento estável de longo prazo que vem sendo projectado desde 1975. Esta é uma constatação dos investigadores especialistas em economia agrária, João Mosca e Yara Nova, e corroborada por Castigo Langa, que já foi ministro dos Recursos Minerais e Energia no Governo de Joaquim Chissano. O estudo conclui haver um paradoxo entre a retórica e a realidade, a tal ponto do país continuar ainda fortemente dependente de importações.

Abanês Ndanda

O Estudo que deu lugar ao livro “A contra transformação agrária em Moçambique” é baseado na comparação de vários indicadores, tendo se constatado que desde 1975 o sector agrário vem sofrendo uma contra-transformação, com os principais indicadores-chave a declinar.

De acordo com os autores, ao longo de décadas, a evolução do sector agrário não sofreu um processo de transformação estrutural, não contribuindo igualmente para a reestruturação da economia e da sociedade.

Atesta esta conclusão, o facto da maioria dos indicadores do sector agrário e da economia apresentarem evoluções contrárias às que caracterizam a transformação estrutural e o desenvolvimento com crescimento estável de longo prazo, crescentemente mais competitivo no contexto da economia globalizada, equitativo social e espacialmente e ambientalmente sustentável.

Por exemplo, “fazendo uma comparação de 1970 com o ano de 2015, podemos notar que a área trabalhada pelos pequenos produtores baixou, a área trabalhada pelos médios produtores baixou e a área trabalhada pelos grandes produtores também baixou”, referiu João Mosca.

De acordo com o investigador, a contra transformação constatada neste trabalho resulta de instituições e políticas públicas incoerentes e instáveis, mercados distorcidos, escassez e utilização ineficiente de recursos para o investimento privado e realização das funções económicas e sociais do Estado, baixa modernização do tecido produtivo, secundarização do sector agrário e dos pequenos produtores que produzem a quase totalidade dos bens alimentares, exploração predadora de recursos naturais, agravamento da incidência e dos efeitos dos choques climáticos, desindustrialização e crescente incapacidade de satisfação das necessidades básicas dos cidadãos.

O livro em referência se baseia essencialmente num diagnóstico dos principais ‘calcanhares de Aquiles’ do sector agrário moçambicano, entretanto a pesquisadora e especialista na matéria, Yara Nova, mais do que apontar os problemas, sugere o que fazer. “Já estamos a preparar um estudo exatamente para dizer o que fazer”, referiu Yara Nova.

“Comemos o que não produzimos e produzimos o que não comemos” – João Mosca

O pouco investimento feito na agricultura vai para culturas de exportação

Já há muito que se diz que um dos problemas da agricultura é a falta de investimento, tendo em conta, por exemplo, a percentagem do Orçamento do Estado dedicada à agricultura que nunca chegou nem perto de 5%. Entretanto, João Mosca critica ainda mais o facto de mesmo o parco investimento feito ser para culturas que não vão de encontro com as necessidades locais de consumo para cumprir o papel social da agricultura – a alimentação em primeiro lugar.

 

“Comemos o que não produzimos e produzimos o que não comemos”, diz Mosca, criticando o facto de o pouco investimento feito na agricultura geralmente ser dirigido às culturas de exportação, como a castanha de caju, algodão, e outras, o que nos leva a comer o que não produzimos.

 

Na explanação de João Mosca existe toda “uma necessidade de garantir a segurança alimentar”, sem se depender da rentabilidade ou alguma viabilidade que justificasse um investimento, seja do sector privado ou de quem quer que seja.

Tal como frisam os investigadores, desde 1987, especificamente após a liberalização da economia, Moçambique tem-se configurado uma economia assente no extractivismo de recursos naturais, crescentemente circunscrita ao sector primário. 

“Na verdade, esta tendência centrada no sector primário tem as suas raízes na época colonial, no âmbito das funções de Moçambique como colónia, que era de produzir matérias-primas para abastecer indústrias fabris em Portugal. Esta afirmação encontra fundamento, quando analisados alguns indicadores económicos (PIB, estrutura das exportações e importações, e investimentos), em que o crescimento é maioritariamente sustentado pelos mega projectos, extracção de recursos mineral-energético (alumínio, gás, energia eléctrica e carvão mineral) e no sector agrícola onde predomina a exploração de recursos florestais e as culturas de rendimento, como o tabaco, algodão, açúcar e o caju, cujo o destino final são as exportação”, referem os especialistas.

Explicando a expressão de que se come o que não se produz ao mesmo tempo que se produz o que não se come, considera Mosca que quando analisadas as variáveis do comércio externo de Moçambique, verifica-se, por um lado, um rápido crescimento das exportações, impulsionado por um elevado volume de Investimento Directo Estrangeiro (IDE) e de matérias-primas, e, por outro lado, importação de bens de consumo.

“Isto é, produz-se o que não se consome e importa-se o que se consome, o que contribui para a persistência de elevados índices de dependência externa alimentar em paralelo com falta de procura de bens alimentares produzidos no país, e insatisfação das necessidades alimentares, componente principal da prevalência dos elevados níveis de pobreza, insegurança alimentar e subnutrição”, João Mosca.

Não produzir o que se come provoca importação insustentável

O contexto geral, de acordo com João Mosca e Yara Nova, durante o período de 2001 a 2020, a balança comercial geral e a agrícola e alimentar foram sempre deficitárias, o que se justifica por um conjunto de razões, nomeadamente: crescimento demográfico (com taxas médias anuais de perto de 3%) e a crescente migração da população para as cidades, com implicações na demanda por bens de consumo e de produtos alimentares, e alterações das dietas alimentares; aumento do rendimento médio por habitante, com efeitos sobre as quantidades procuradas; depreciação da taxa de câmbio a médio prazo; abertura de fronteiras, no âmbito da SADC, e crescente importação de bens (principalmente alimentares); variabilidade dos preços internacionais com efeitos sobre os valores gerados pelos principais produtos exportados; baixa produção e produtividade nacional com consequências sobre a competitividade no mercado externo, medida pelos preços, qualidade e regularidade da oferta; e, estrutura produtiva orientada para a exportação, principalmente de recursos naturais e de culturas de rendimento.

Tal como explicou João Mosca, o efeito directo de Moçambique não produzir o que consome e consumir o que não produz é que as exportações totais, agrícolas e alimentares apresentam uma tendência crescente, embora se verifique uma redução nos últimos três anos. Por outro lado, ao mesmo tempo que as exportações agrícolas (daquilo que a nossa economia produz e não consome) cresceram a um ritmo acelerado, com taxas de crescimento médio anual de 18%, enquanto as exportações alimentares e exportações totais registaram uma taxa média de crescimento anual de 16% e 11%, respectivamente.

Uma ilustração de o sector agrário produzir o que não se consome é que dos cinco principais produtos agrícolas e alimentares exportados destacam-se o tabaco e o açúcar.

A par disto, as importações totais, agrícolas e alimentares também apresentaram tendências crescentes, registando taxas de crescimento média anual entre 15% e 14%, respectivamente.

Por outro lado, dos cinco principais produtos agrícolas e alimentares importados, destacam-se o arroz, trigo e o óleo alimentar, uma conjuntura que resulta em as balanças comercial, agrícola e alimentar apresentaram valores negativos (deficitárias), o que revela uma baixa produção interna e uma economia dependente de importações.

“A longo prazo, esta realidade poderá provocar mudanças na estrutura de produção interna causadas pelo aumento das importações (inflação importada, aumento do custo de vida, redução da poupança e das reservas nacionais, entre outros)”, refere Mosca. 

“Todas culturas podem ser de rendimento” – Castigo Langa

Rebatendo o discurso de crítica à primazia dada às chamadas culturas de rendimento, Castigo Langa, que já ocupou importantes cargos governamentais, incluindo ligados ao sector agrário, entende que todas culturas podem ser de rendimento.

Para Langa, existem vários problemas na direcção pública do sector agrário em Moçambique, “mas a verdade é que todas culturas podem ser de rendimento”.

“Posso perguntar quem vai aos conselhos técnicos? Os dirigentes ao nível do topo não participam. Eu, nos meus tempos, ia pessoalmente para os conselhos técnicos e convidava até especialistas mesmo de fora do governo para partilharem conhecimento e experiências, e toda a equipa aprendia”, considera Langa, criticando alguma falta de liderança no sector.

A colocação de Langa foi em parte corroborada pelo empresário e consultor em produção agrária, Arnaldo Ribeiro, no sentido de “falta um comprometimento com o desenvolvimento da agricultura”.

De acordo com Arnaldo Ribeiro, “é preciso haver um compromisso da sociedade moçambicana em todos sectores, incluindo partidos políticos, sem distinção de cores (partidárias)”.

“Há que estimular o sector empresarial privado criando políticas que incentivem o surgimento de um sector agrário forte”, disse Ribeiro se referindo inclusive para o desenvolvimento de culturas alimentares, reclamando no mesmo diapasão que “o papel do sector privado tem sido negligenciado”.

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