- Estrangeiros recebem 10 vezes mais e tem direito a regalias e despesas pagas
- Depois de perder caso no tribunal, Eni passou a dar contratos precários com prazo incerto
- Para não ter nenhuma responsabilidade, os contratos são assinados via agência de recrutamento
- Com contratos incertos, a Eni pode despedir o trabalhador a qualquer momento sem indemnizá-lo
- Salários dos moçambicanos entre USD 1000 e 1500, os estrangeiros auferem entre USD 8000 e 20 mil
O arranque da exploração do gás natural na Bacia do Rovuma no ano passado foi visto como uma bênção para o país. Mas, para os cerca de 200 trabalhadores moçambicanos do projecto Coral Sul da área 4 liderada pela Eni Rovuma Basin, Mozambique, nem tudo é a mil maravilhas. Relatam um cenário de descontentamento generalizado devido ao tratamento desigual e discriminatório entre nacionais e estrangeiros, denunciando ainda uma série de irregularidades. Casos concretos: de há alguns anos a esta parte, a Eni está a contratar mão-de-obra local utilizando empresas de recrutamento, dando contratos precários de prazo incerto. Entretanto, os estrangeiros auferem entre 8 e 20 vezes melhor do que os moçambicanos com as mesmas qualificações e a fazerem o mesmo tipo de trabalho. A Eni reconhece que terceirizou contratos e que existem alguns a prazo incerto, mas nega estar a dar tratamento desigual, ainda que reconheça que os estrangeiros têm direito a “condições de subsistência”. Quanto a discrepância salarial alega confidencialidade para não comentar.
Reginaldo Tchambule
No presente ano de 2023, a Plataforma Flutuante Coral Sul, do consórcio liderado pela Eni, contribuiu até o momento com cerca de 100 milhões de dólares para o tesouro e se espera que, no próximo ano, haja um incremento significativo das receitas, o que demonstra claramente que a empresa está a facturar milhões com a exploração do gás. Contudo, os obreiros desta proeza, no caso a mão-de-obra local, relatam um ambiente laboral tenebroso e desafiante.
Através de uma exposição que o Evidências teve acesso, os trabalhadores moçambicanos na Eni denunciam tratamento desigual e discriminatório por parte daquela multinacional italiana. Para se eximir de suas responsabilidades perante os contratados, a empresa tem estado a usar empresas de recrutamento para rubricar contratos com a sua mão-de-obra local.
Sendo assim, apesar de prestarem trabalhos directamente à Eni e contarem como colaboradores da empresa, os trabalhadores nacionais não têm nenhuma relação jurídica formal.
O Evidências teve acesso a um contrato de um trabalhador moçambicano na Eni. O mesmo não faz nenhuma relação entre a Eni e o colaborador. É assinado entre a empresa de recrutamento, denominada Heading Moz e o trabalhador e já deixa claro que a Eni é seu cliente e que o contrato é precário.
É que, não obstante a terceirização dos contratos, os trabalhadores nacionais estão ligados à Eni através de contratos com prazo incerto, o que permite que a empresa possa a qualquer momento despedir os trabalhadores sem direito a nenhuma indemnização e muito menos algum benefício social e económico, como são os casos de bónus que muitas vezes são distribuídos pelos estrangeiros, maioritariamente italianos, enquanto os nacionais engolem a saliva.
Os trabalhadores nacionais relatam casos de despedimentos sem justa causa e intimidação constante em aproveitamento ao facto de os contratos serem precários ou incertos, revelando tratar-se de um acto de má-fé, segundo os trabalhadores.
Para além de não oferecerem nenhuma garantia laboral aos trabalhadores moçambicanos, os contratos incertos não oferecem nenhuma garantia social ou bancária, ou seja, devido ao regime contratual precário um funcionário nacional da Eni não pode ter crédito bancário, financiar uma residência, viatura e etc.
“O actual director da Eni Rovuma Basin, Giorgio Vicini, deixou claro que não pretende recrutar directamente a mão-de-obra local, a menos que haja uma imposição por parte do Governo moçambicano”, revelam os queixosos.
Com o início da produção do gás natural liquefeito em Moçambique no terceiro semestre de 2022, as empresas do CORAL FLNG SA e a Eni decidiram dar bónus de produção aos seus funcionários pela sua contribuição no alcance da grande meta nacional e mundial, que coloca Moçambique entre os 10 maiores produtores de gás. Infelizmente, os trabalhadores com contratos incertos foram excluídos do bónus de produção e os mesmos não tiveram direito a retroactivos no ano 2023, depois da revisão salarial feita no mês de Agosto.
Há trabalhadores que estão a seis anos com contratos incertos
O Evidências apurou que há trabalhadores que trabalham na Eni há mais de quatro ou seis anos com contratos precários. Quando entraram, a empresa recrutadora chamava-se Aldalia e nessa altura os contratos eram por período certo. Sucede, porém, que após despedir trabalhadores sem justa causa e perder os casos no tribunal, a Eni foi condenada a indemnizar o trabalhador e ainda pagar pelo período de contrato que faltava.
Vendo-se ameaçada de parar na barra do tribunal mais vezes, como resposta, a empresa Eni em Moçambique decidiu instruir a empresa Aldelia, empresa recrutamento que na altura prestava serviços, a passar recrutar a mão-de-obra moçambicana com contratos incertos. No ano de 2020, a empresa Heading Moz ganhou o contrato de providenciamento de mão-de-obra local, mas por instrução da Eni manteve os contratos incertos.
“A Eni tem o hábito de despedir as pessoas de qualquer maneira. No princípio, tínhamos contratos, mas porque numa dessas vezes a Eni expulsou um funcionário que depois foi submeter uma queixa ao tribunal e a Eni foi condenada a pagar indeminização, a empresa preferiu passar a dar contratos incertos, em que a qualquer momento pode mandar embora qualquer pessoa e não ter nenhuma responsabilidade”, sublinhou um trabalhador revoltado.
A mudança dos regimes contratuais coincidiu com a mudança da empresa recrutadora e, segundo apurou o Evidências, há casos de trabalhadores que sequer conhecem o escritório da agência Heading Moz que assegura os seus contratos.
Funcionários italianos e de outras nacionalidades tem tratamento diferente
Diferente dos trabalhadores moçambicanos, informações em poder do Evidências indicam que os trabalhadores italianos e de outros países estrangeiros têm contratos a prazo certo ou indeterminado, assinados directamente com a Eni e com remuneração que chega a ser 8 vezes ou mais do que dos moçambicanos com mesmas qualificações e a fazerem a mesma actividade.
Segundo revelam os funcionários, a média de salários dos moçambicanos é de 1000 a 1500 dólares (cerca de 64 mil a 144 mil meticais) e estão há quatro anos sem nenhuma revisão, o que os coloca abaixo da média salarial da indústria de oil & gas no mundo e até mesmo em África.
Enquanto isso, os trabalhadores italianos e outros estrangeiros recebem entre 8000 e 20 mil dólares por mês, correspondente a cerca de 504.000,00 e 1.260.000,00 meticais e com direito a uma série de regalias pagas pela empresa. Os estrangeiros em Moçambique têm, entre outros, o direito a casa, carro com motorista particular, actividades sociais pagas (ginásio, viagens dentro e fora do país) e escola para os seus filhos.
“A produção do gás natural liquefeito traz muitos ganhos ao país e não só, através dos impostos e emprego da mão-de-obra local. Contudo, desde que começou a produção do gás natural através do projecto CORAL SUL, a realidade tem sido completamente diferente. Os trabalhadores moçambicanos na empresa Eni, pouco ou nada se tem beneficiado dos ganhos, Primeiro, os moçambicanos trabalhadores, na empresa Eni, são altamente qualificados, com diplomas, certificados e treinamentos de gabarito internacional. Mas apesar disto tudo desde o começo da produção do gás natural, os salários continuam muito abaixo em relação aos seus colegas expatriados, a média do sector no país e aos seus colegas trabalhadores da Eni em todas as partes do mundo, especialmente em África”, protestam.
Eni Rovuma Basin reconhece que há trabalhadores com contratos precários
Respondendo a partir da Itália a um questionário do Jornal Evidências, a Eni Rovuma Basin reconheceu que utiliza trabalhadores contratados que podem ter períodos contratuais diferentes, dependendo da necessidade do negócio e da tipologia do trabalho, sempre em linha com a legislação local.
“A entidade empregadora destes colaboradores é um provedor externo e é responsável pela sua gestão contratual. Contudo, estamos cientes de que grande parte dos colaboradores afectos à Eni estão em regime de contrato por tempo indeterminado”, refere a empresa, escusando-se de usar o termo “período incerto” que vem nos contratos.
Em Moçambique, a Eni conjuntamente com os seus parceiros da Área 4 emprega directamente mais de 200 colaboradores moçambicanos e investe de forma continua na formação e capacitação dos seus colaboradores locais
Sobre relatos de casos de despedimentos sem justa causa e intimidação aos moçambicanos, aproveitando-se do facto de terem contratos precários/incertos, a Eni diz que “a Empresa não tem nenhuma informação de situações similares”.
Sobre as informações de que os trabalhadores italianos e de outros países estrangeiros têm contratos diferentes dos moçambicanos e com remuneração que chega a ser 8 vezes que dos moçambicanos a fazerem a mesma actividade, a empresa alega questões de confidencialidade para reservar-se ao direito de não partilhar certas informações devido a sua sensibilidade, contudo diz que dá condições de subsistência aos estrangeiros.
“Por outro lado, no âmbito do desenvolvimento das suas actividades, a empresa tem como um dos seus principais objectivos o desenvolvimento do capital humano e das suas competências profissionais com vista a contribuir para o crescimento de todos os seus colaboradores. Neste âmbito, a ERB tem neste momento 11 colaboradores nacionais no estrangeiro, dos quais quatro estão em missões profissionais internacionais e sete a fazer mestrado especializados em Universidades na Itália. Além disso, a empresa está num processo gradual de nacionalização de certas posições ocupadas por expatriados. Os trabalhadores expatriados são relocados nos seus países de origem para trabalhar no estrangeiro e como resultado a empresa tem a obrigatoriedade de proporcionar determinadas condições de subsistência. Gostaríamos de vincar que os trabalhadores moçambicanos que estão neste momento no estrangeiro beneficiam-se também das mesmas condições nos países onde estão alocados”, sublinhou.
Em relação à discrepância em termos de salários entre nacionais e estrangeiros, a Eni alegou novamente questões de confidencialidade para não responder a questão.
Inspecção Geral do Trabalho promete pronunciar-se
As irregularidades contratuais já são do conhecimento do Ministério do Trabalho e Segurança Social, através da Inspecção Geral do Trabalho, órgão ao qual os trabalhadores nacionais na Eni recorreram, em Agosto passado, em busca de uma solução dos seus problemas e proteção do Estado para os seus direitos.
Segundo os queixosos, a Inspecção do Trabalho deslocou-se ao terreno para investigar e até conversou com os trabalhadores moçambicanos, o que permitiu descobrir diversas irregularidades. Contudo, estranhamente, os resultados da referida sindicância nunca foram tornados públicos, o que leva os trabalhadores a desconfiarem da possibilidade de ter havido uma negociata entre os inspectores do Ministério do Trabalho e a direcção da Eni para ocultar-se os resultados da investigação, enquanto os trabalhadores nacionais continuam votados à própria sorte.
“A equipa dos Recursos Humanos, na pessoa da sua directora Mara Milani e o seu adjunto Elias Chau, tudo fez para impedirem com que os inspectores do Ministério do Trabalho estivessem em contacto com os funcionários moçambicanos, mas todo o esforço foi em vão. Neste momento, a empresa Eni em Moçambique se encontra sob investigação, das diversas irregularidades encontradas no terreno, desde os tipos de contratos usados aos trabalhadores moçambicanos, a larga diferença em termos de remuneração entre um local e expatriado, especialmente os italianos, benefícios sociais e etc”, relatam os trabalhadores.
O Evidências já submeteu um pedido de entrevista e esclarecimentos à Inspecção geral do trabalho, com vista a obter a reação desta entidade a respeito das irregularidades relatadas e dos resultados da investigação, contudo, até ao fecho desta edição, a instituição ainda não estava disponível para a entrevista. Contudo, continuaremos aguardando pela resposta para o seguimento deste assunto.
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