Acórdão do CC representa risco para actuação de juízes distritais nas eleições de 2024 – observam juristas e juízes

DESTAQUE POLÍTICA
  • Presunção de competências continua a gerar barulho nos meandros jurídicos
  • Não é competência do CC contar votos, de acordo com Ericino de Salema
  • “A função de um tribunal é decidir e não ser caixa de correio” – Sinai Nhatitima
  • Juízes distritais podem não saber o que fazer em 2024

Juristas e juízes, incluindo do Tribunal Supremo, criticam a actução do Conselho

Constitucional em relação as competências dos tribunais judiciais de distrito e alertam

para um ruído capaz de minar a actuação destes nas eleições gerais a ter lugar no

próximo ano. O jurista e jornalista Ericino de Salema, o magistrado judicial

Esmeraldo Matavele e o conselheiro e porta-voz do Tribunal Supremo concordam na

crítica ao posicionamento do CC, considerando uma verdadeira usurpação de poderes

do legislativo, ao presumir, sem uma base legal, o que devem ser as competências dos juízes de distrito em matéria de contencioso eleitoral, para além de ser uma interpretação nociva ao Estado de Direito Democrático.

 

Abanês Ndanda

A proclamação dos resultados das eleições autárquicas pelo Conselho Constitucional gerou uma onda de indignação nos meandros da magistratura. Vários juristas entendem que a instituição liderada por Lúcia Ribeiro usurpou as competências dos tribunais distritais.

Falando numa mesa redonda organizada pela Associação Nacional dos Juristas Moçambicanos (ANJUR), denominada “In Dúbio Pro…Café”, subordinado ao tema: Reflexões sobre o Processo Eleitoral em Moçambique, juntando várias individualidades nacionais, incluindo académicos, advogados, juízes, procuradores e outros, o conceituado jurista Ericino de Salema, que foi orador principal, considera problemática a interpretação do Conselho Constitucional (CC), segundo a qual os tribunais distritais não têm competência para anular os resultados das eleições.

“Eu acho que não anda bem o CC nestes assuntos, em particular, porque a Lei, até onde eu entendo, dá competências aos tribunais distritais”, sublinha Ericino de Salema.

De acordo com Salema, o próprio CC chega a esta decisão “por via de uma interpretação muito esforçada”, acrescentando tratar-se de um posicionamento nada razoável ao chegar-se a uma situação de “exclusão dos tribunais distritais de certas funções que são típicas dos tribunais por via de interpretação”.

Em relação a independência dos juizes que interveem no processo eleitoral, com grande enfoque para o Conselho Constitucional, Salema entende que o mandato deveria ser não renovável afim de se garantir a sua independência, pois não esperariam recompensas ou reconduções.

“Eu acho que o mandato tinha de ser único, de sete a nove anos, e que com isso não haveria uma perceção de que o próprio juiz está a agir tendo em conta a sua própria reeleição”, disse o jurista, acrescentando que o presidente do Conselho Constitucional deveria ser eleito pelos seus pares e não pelo Presidente da República.

No entendimento de Salema, “precisamos de começar a pensar em um novo modelo que nos possa transmitir confiança, credibilidade e também seriedade na composição dos processos eleitorais”.

Conselho Constitucional não tem competência para mandar recontar votos

Em relação a outra presunção de competências que fez com que o Conselho Constitucional decidisse recontar e retirar votos de um partido para o outro, em vez de mandar aos ógãos eleitorais repetir aqueles actos, Salema foi peremptório em referir que é mais uma invenção dos juízes do Constitucional.

“Sobre se o conselho Constitucional tem ou não competência para recontar votos, eu, particularmente, acho que não, em homenagem ao princípio de separação de poderes. CNE é um órgão de administração pública e o CC enquanto órgão de soberania, que obviamente é um outro poder, não pode recontar os votos e dizer quem ganhou. Cabe ao CC verificar se a integridade está lá e depois confirmar ou não, mas não pode alterar. É uma inovação que não foi fundamentada, quando tinha o dever de fazé-lo”, sublinhou.

Para José Caldeira, advogado respeitado e actual presidente da ANJUR, o problema interpretativo e de presunção de competências deriva da falta de coerência do pacote legislativo nacional sobre eleições.

“Eu já fui juiz e não consigo ver-me na situação em que não possa tomar uma decisão. Os tribunais são para tomar decisões e produzir sentenças, não estão ali só para produzir pareceres. Há sempre escalões e há possibilidade de recurso. Nunca se pode dizer que um tribunal não toma decisões e que pura e simplesmente prepara as coisas para outro tribunal decidir. Isso não tem lógica nenhuma num sistema coerente”, sublinhou.

Ainda na contestação do acórdão que selou o triunfo da Frelimo em 56 dos 65 municípios, o presidente da Associação Moçambicana dos Juízes (AMJ), Esmeraldo Matavele, destaca a importância do Juiz do Tribunal do distrito em caso de contencioso eleitoral.

“Quando exista um ilícito eleitoral, o juiz distrital tem a possibilidade de chamar as testemunhas, tem a possibilidade até de chamar os órgãos de administração eleitoral, tem a possibilidade de solicitar os editais e qualquer tipo de informação e com base nessa informação o juiz acaba estando em condições de tomar uma decisão mais próxima da realidade. O Conselho Constitucional ao dizer que compete aos tribunais em matéria de contencioso eleitoral fazer isto, isto e aquilo, está a substituir-se ao legislador”, referiu Matavele, sublinhando não ser trabalho do tribunal simplesmente levantar constatações para dar recomendações, ao mesmo tempo que entende como inaceitável o entendimento de que mesmo tendo em mãos provas que devam levar a anulação de eleições não proceder neste sentido.

Matavele considera que a não ocorrer uma intervenção do legislador no sentido de clarificar as competências dos tribunais distritais, poderão ocorrer situações dos juízes distritais se absterem de decidir por se considerarem incompetentes no processo eleitoral a ter lugar em 2024 próximo.

A função de um tribunal é decidir e não ser caixa de correio

Este posicionamento é corroborado pelo Tribunal Supremo no exacto sentido de negação de que os tribunais distritais não tenham poder de anular eleições e entende que o Conselho Constitucional se equivocou.

É a primeira vez que o Tribunal Supremo se pronuncia depois de ver sentenças dos tribunais distritais anuladas pelo Conselho Constitucional, após ter sido forçado a adiar liminarmente uma conferência de imprensa, no mês passado, em que queria contestar a decisão.

“Se nós olharmos para a lei eleitoral, ela diz precisamente que os tribunais do distrito apreciam as irregularidades que decorram durante a campanha, a votação e o processo de apuramento. Portanto, é uma cláusula aberta que resulta da lei e é preciso ter sempre em conta que nós somos tribunais. Somos órgãos de soberania. Não somos uma caixa de correio ou de trânsito de expediente de um órgão para o outro. A função de um tribunal é decidir”, entende Pedro Sinai Nhatitima, porta-voz do Supremo.

De acordo com o porta-voz do Tribunal Supremo, “o juiz goza de elementos interpretativos para se ele achar que deve validar ou anular um acto eleitoral, fazé-lo e se as partes não concordarem podem recorrer, e neste momento pode o Conselho Constitucional decidir em última instância em sentido oposto ao do tribunal judicial de distrito”.

Ademais, assevera Nhatitima que “não pode o Conselho Constitucional vir dizer que as competências do tribunal X é A, B ou C, isso seria legislar, e o Conselho Constitucional não tem essa competência que é reservada somente à Assembleia da República”.

Para o porta-voz do Tribunal Supremo, “se se achar que este é que é o papel do tribunal, o de fazer ou transitar expediente de uma instituição para a outra, porque há uma outra instituição que vai tomar uma decisão final, então nós achamos que não vale a pena estar a ocupar os tribunais com esta matéria. Os tribunais, como eu disse, são órgãos de soberania e têm muita sobrecarga de trabalho, têm muitas ocupações. Se é para os tribunais virem, nesta matéria eleitoral, então é preciso que se lhes atribua pleno poder para tomar as decisões que melhor lhes aprouver em termos da Constituição, nos termos da lei. Claro, com reservas de as partes não concordarem, podendo interpor recurso ao Conselho Constitucional”.

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