Luca Bussotti
Corria o ano de 1609 quando Maceió, actual capital do Estado de Alagoas, Nordeste do Brasil, foi oficialmente fundada, graças a algumas iniciativas de empresários portugueses que iniciaram o cultivo de cana de açúcar. Entretanto, a localidade já existia, pois ela foi invadida pelos franceses ainda no século XVI, e o será em 1630 pelos holandeses; em ambas as circunstâncias, os portugueses, com a ajuda das populações locais, conseguiram retomar o controlo da cidade, na altura parte da Capitania de Pernambuco.
Maceió é também chamada de “cidade do sorriso”, embora seu nome – de origem tupí – signifique “terreno alagadiço”, em razão de suas lagoas que sempre caracterizaram o ambiente desta urbe. E justamente uma dessas lagoas, a principal, denominada de Lagoa de Mundaú, representa hoje o símbolo do pior desastre ambiental causado pelo homem que já afectou uma cidade inteira ao longo da história da humanidade.
A economia de Maceió desenvolveu-se, durante muito tempo, graças aos engenhos de açúcar, o principal recurso de toda a antiga Capitania de Pernambuco. Entretanto, com a crise e o fechamento de tais usinas, muita gente iniciou a perder emprego, ocupando os poucos espaços disponível no meio urbano, e originando assim o fenómeno conhecido como das “favelas”, presentes em Maceió assim como em quase todas as grandes cidades brasileiras. A capital alagoana, porém, conseguiu se erguer de novo em anos recentes: hoje, o turismo é (ou, melhor, era) a principal atração e receita da urbe, tão que Maceió foi a única cidade brasileira a ganhar o prémio de capital americana da cultura, sendo apelidada como “Caribe brasileiro”. Praias, piscinas naturais, eventos culturais, serviços de bom nível, tudo isto representou a tentativa de Maceió para ultrapassar a crise da sua indústria tradicional, olhando para o século XXI com esperança e inovação.
O sonho, porém, quebrou-se. Uma parte enorme da cidade, justamente a que está mais próxima à lagoa de Mundaú, está afundando. Uma população de quase 60.000 pessoas – mais do que a inteira população da cidade portuguesa de Faro, só para termos uma ideia do tamanho da tragédia – foi obrigada a deixar suas habitações, actividades, edifícios em construção, para ir viver fora da área de risco. Uma área cujo desabamento, a partir de Novembro passado, está incrementando a uma velocidade impressionante, tão que as autoridades tiveram de decretar o estado de emergência.
A tragédia começa em 1976, quando a Salgema Indústrias Químicas inicia a mineração de sal-gema, descoberto nas profundezas (a mais de 1000 metros abaixo da terra), e utilizado para produzir soda cáustica e outros produtos químicos, na indústria farmacêutica e na produção de papel. A extração de sal-gema implica o esvaziamento do subsolo, com riscos enormes de desabamento, pois as cavernas subterrâneas que se formam devem ser preenchidas pela sociedade responsável (neste caso a Braskem, que adquiriu a Salgema Indústrias Químicas). Sem este preenchimento com uma solução apropriada, o subsolo fica cheio de túneis vazios, e o risco de desabamento do terreno superficial se torna uma certeza. Quando e como isso vai acontecer é só questão de tempo e de modo: com efeito, pode haver um colapso repentino, ou também um desmoronamento paulatino e constante. Em Maceió o deslocamento do solo teve, nos últimos dias, um ritmo variável entre 1 centímetro a 0,7 centímetros por hora, com abalos sísmicos constantes. A perspectiva é de que o desmoronamento definitivo possa criar uma cratera no local do tamanho do estádio do Maracaná, engolindo a lagoa de Mandaú, tornando suas águas salgadas, com impactos devastadores para toda a área em questão, começando pelo rico mangal nos seus arredores e para a redução drástica de água doce para fins domésticos.
Em 2021 a sociedade Braskem fechou um acordo de indemnização com o Ministério Público Federal, no sentido de garantir indemnizações aos moradores que tiveram de abandonar suas habitações de forma repentina e sem o dinheiro para comprar ou alugar novas casas. Entretanto, o acordo parece estar em incumprimento, uma vez que, ao longo das últimas semanas, centenas de pessoas desfilaram nas ruas de Maceió para reclamar os valore prometidos e, parece, até hoje, não entregues, ou entregues só em parte. Ninguém, porém, poderá indemnizar os desastres ambientais que esta empresa causou com a sua actividade de mineração de sal-gema.
Tudo quanto dito não teria sido possível sem percebermos o que a Braskem representa para o Brasil. A Braskem é uma sociedade brasileira, com sede em São Paulo, cujos acionistas são a Novonor e a Petrobras. É líder na produção de resinas termoplásticas nas Américas, com 36 sítios industriais espalhados entre Brasil, Estados Unidos e Alemanha, é a nona companhia petroquímica do mundo, e em 2021 faturou quase 20 mil milhões de dólares.
O caso da Braskem em Maceió representa o símbolo de como o imbricamento entre empresas em parte controladas pelo Estado, seu poder económico e seu peso em toda a economia de um país (neste caso Brasil), juntamente com a complacência das autoridades públicas torne o processo contra estes grandes sujeitos industriais moroso e geralmente injusto. O facto de os moradores afectados terem dirigido uma queixa (acolhida) ao Tribunal holandês de Roterdã (onde a Braskem tem três escritórios), devido à morosidade com que está a decorrer o processo no Brasil demonstra quão complicado seja lidar com multinacionais desta envergadura para que elas respeitem pelo menos as práticas mais dignas de indemnização de pessoas que perderam tudo com o desastre ambiental acima ilustrado. Entretanto, a história desta tragédia é longa, e seria necessário remontar ao início da concessão para que ela seja melhor compreendida. Uma concessão de exploração mineira como a da Braskem em Maceió que nunca devia ser dada dentro de um centro urbano e de uma lagoa de importância fundamental para o meio ambiente de uma inteira região. No início, em 1976, a ditadura militar no poder, segundo fontes hoje apuradas, conhecia perfeitamente os riscos ínsitos na exploração da mina de sal-gema de Maceió. A sua inteligência fez de tudo para calar movimentos sociais e imprensa local (e até blocos do Carnaval local) em mérito às críticas movidas com relação à mina em questão. O Intercept Brasil entrou na posse de documentos que revelam sem sombra de dúvida o papel da ditadura e do SNI (Serviço Nacional de Informação daquela época) nesta iniciativa. Este cenário confirma que, sem regimes democráticos em que a opinião pública possa expressar, melhor se preventivamente, suas opiniões, até mandar parar projectos insustentáveis e danosos do ponto de vista ambiental, desastres desta natureza voltarão a acontecer.
O ensinamento do affaire-Brasken de Maceió não tem a ver apenas com os descuidos da empresa que levou a cabo o projecto: ele toca a questão do controlo democrático, por parte de populações locais, da mídia, da sociedade civil, de investimentos que a autoridade pública pode até apoiar, mas que devem ser avaliados com ponderação e tendo em conta os interesses acima de tudo das instâncias locais e do meio ambiente. Interesses que, em muitos casos, vão muito além da “chantagem ocupacional” que esta ou aquela multinacional pode colocar no prato das negociações com as autoridades do país de acolhimento do investimento.
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